segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A GAROTA NA PRAÇA





Desde que li a Náusea de Sartre e os relatos de Jacques Maritain sinto um certo incômodo literário com praças e jardins públicos. Mas, às vezes, sento-me um pouco na praça principal desta pacata cidade do interior e fico observando as pessoas que passam. Gosto de ver seus rituais involuntários e inconscientes, enquanto transitam. Mas ontem, o que chamou a minha atenção estava quase imóvel. Uma garota aparentando uns dezessete anos, sentada sobre o banco, num movimento muito discreto, alimentava os pombos em volta de si mesma. Os pássaros mais ousados chegavam mesmo a pousar junto a ela. Meus olhos pararam sobre aquela cena mais tempo do que eu pretendia. O roteiro dramático que se encenava diante de mim falava de uma jovem mergulhada numa absorvente ausência de si que seu corpo já não representava uma ameaça aos pombos que se alimentavam em suas mãos. Assim, o que parecia harmonia entre os protagonistas daquela peça dramática na verdade marcava a distância abissal que os separava. Aquela jovem, naquele estado, causou em mim uma sensação estranha, algo como uma violência silenciosa, pois seu grito não chegava aos meus ouvidos, mas aos olhos.
Contemplei a cena por uns quinze minutos, depois retomei o meu caminho. Mas, fugir do cenário não me devolveu a liberdade. Aquela imagem agarrou-se à minha memória como uma inoportuna moita de carrapicho que se prende à roupa. No dia seguinte, no trabalho, comentei o fato com uma colega que, por coincidência, a conhecia: Reservadamente começou a resenhar oralmente a sua biografia e me senti mergulhando num longa-metragem dramático. Para resumir o enredo: tratava-se de uma jovem concebida num encontro fortuito da mãe com um homem desconhecido e por isso ignora quem era seu pai. Ainda criança, presenciou o assassinato da própria mãe. Abandonada à própria sorte, foi cooptada por uma mulher dona de uma boca de fumo, que a colocou para fazer entrega de uns “bombons” que ela não podia comer. Seus dias de infância e adolescência transcorreram nesse esquema: ir à escola e fazer entrega, em troca de teto e comida e roupa. Por causa dessa estranha ocupação, a vida lhe ensinou a arte da astúcia, das mazelas e outros ofícios.
Naquela tarde, quando a vi na praça, fazia pouco tempo que a polícia tinha desbaratado os negócios da mulher, que foi presa por tráfico. Mas uma vez, a jovem da praça ficou abandonada à própria sorte. Novamente, foi acolhida para morar e trabalhar numa casa de pessoas que a conheciam, só que desta vez trabalhar e viver condignamente.
Conhecer um pouco mais daquela jovem me fez pensar no quanto é difícil construir uma existência à altura da dignidade humana, quando a roda da fortuna só lhe oferece desafios e desilusões: desde o nascimento e seu caminho espiral parece levar sempre ao mesmo destino: a solidão. E o pior de toda solidão é que você consegue estar sozinho, mesmo cercado de pessoas. Um mundo que me é indiferente porque não digo nada a eles e eles não mais me dizem nada.
A garota na praça lembrava um refrão de triste de Raul Seixas. Só que com uma pesada variação. Ao invés de repetir “Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos”. A cena dos pombos pousando sobre ela me dizia que eu estava diante de uma estátua inerte que, ainda que se movesse, parecia não sair do mesmo lugar: do lugar chamado solidão. Mas, como a praça é o lugar para quem passa, quando passo ali hoje, gosto da ideia de saber que ela encontrou um lugar chamado casa que fica para além daquela prisão sem muro chamada solidão.

Epitácio Rodrigues
Professor de Filosofia e escritor
http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/12/14/noticiajornaldoleitorcronicas,3548944/a-garota-na-praca.shtml




sexta-feira, 17 de julho de 2015

VIVER O PRAZER E O PRAZER DE VIVER


Estou me convencendo de que numa dada fase da existência todos os projetos pessoais confluem para o mesmo objetivo: “curtir a vida”. Não é fácil precisar o momento, mas parece que ele se impõe na transição da adolescência para a juventude. As razões desse fenômeno também não são muito claras. Às vezes penso que a semelhança de comportamentos nessa etapa da vida é provocada por uma intensa rebeldia à inexorável idade adulta que chega tiranicamente para todos imposta pelos ditames do tempo e dos valores culturais. Não sei por que, mas o discurso do “curtir a vida” está sempre vinculado um comportamento hedonista, no qual a curtição da vida se dá num fluxo de múltiplas experiências de busca de prazer imediato, intenso e efêmero associado a uma recusa de qualquer compromisso responsável: não se quer saber de dever, de prudência e de ponderações prévias sobre os atos. A impressão que tenho é de uma estranha nostalgia da infância perdida, uma espécie de “Síndrome de Peter Pan”, que transmuta o lúdico pueril em hedonismo e a heterônoma própria daquela faixa etária em irresponsabilidade. Mas isso são apenas conjecturas, não sei realmente qual a resposta para esse fenômeno. Porém, a máxima que melhor traduz esse comportamento, desde os tempos antigos, reza: “comamos, bebamos e gozemos, pois depois da morte não há prazer”. Assim, se vai beber, que o faça até perder a lucidez; se vai comer, que seja até o diabetes ou o colesterol; se vai fazer sexo, que seja até o limite da exaustão...
Sempre que vejo alguém reproduzindo esse comportamento, fico com uma vaga impressão de que curtir a vida anda lado a lado com o risco de encurtá-la.

Não quero dizer que seja saudável viver sempre sob o julgo do “dever”. Ninguém merece, por exemplo, viver refém de cobranças laborais, familiares, conjugais e sem reservar um tempo para si mesmo. Considero uma tremenda estultice alguém levantar a bandeira do “meu nome é trabalho” como o seu grande projeto de vida. A realização pessoal não está nos extremos, como já ponderava o velho Aristóteles, ao dizer que a excelência está no meio-termo entre o excesso e a carência. Uma boa comida, uma boa bebida e momentos de intimidade sexual e de adrenalina são indispensáveis para uma vida salutar. O que não dá pra conceber é essa estranha inversão que prega o “prazer de curtir” a vida acima do “prazer de viver”.

Epitácio Rodrigues da Silva
Crônica publicada no Jornal O Povo on line. 
Link: http://www.opovo.com.br/app/opovo/jornaldoleitor/2015/07/15/noticiasjornaljornaldoleitor,3470173/viver-o-prazer-e-o-prazer-de-viver.shtml

terça-feira, 14 de julho de 2015

PSICOLOGIA DE CHEF


  
Não vou fazer terapia por causa disso, mas uma das frustrações que levarei comigo ao túmulo é não saber cozinhar. Fico fascinado com a mistura de condimentos e temperos que dão aos pratos um sabor irresistível, quando preparados por mãos competentes. Acho até que as próprias mãos que os misturam fazem parte da magia do sabor.
Talvez porque na minha infância não pegasse bem ser entendido no assunto, o pouco que aprendi foi por falta de opção. Numa família de nove irmãos, não dá pra fugir dessa possibilidade quando se está entre os seis primeiros e todos homens. O costume era bastante simples: os mais novos, até alcançar a idade para ir trabalhar na roça ficavam em casa ajudando a mãe nas tarefas domesticas. Mas sempre fui melhor lavando pratos e varrendo a casa. Essa falta de confiança na capacidade culinária foi e ainda é o meu algoz.
Sei que nem sempre os mestres da alquimia culinária foram bem quistos e estiveram em alta como agora. Basta lembrar a quantidade de homens e mulheres que foram queimados sob acusação de bruxaria pelo dever de ofício: misturar condimentos. Quantos reis não se sentiram ameaçados pelos cozinheiros, temerosos que eles preparassem um cardápio perigoso e letal como refeição real. De bruxas, feiticeiros, conspiradores e tantas outras calúnias, o que não faltavam eram acusações contra os mestres do bom sabor.
Mas, verdade seja dita, o maior dos malefícios que cometeram contra eles foi relegar ao esquecimento suas ações terapêuticas. Era a boa comida e boa bebida que curavam as pessoas, como somente agora a medicina oficial parece aceitar. Mas esses alquimistas da culinária nos legaram outra riqueza que está no nosso vocabulário cotidiano e não nos damos conta. Talvez quem já passou pela experiência de receber um diagnóstico de um psicólogo dizendo coisas estranhas com termos esquisitos, tenha sentido saudade daquelas frases de cozinheiros: “você é uma pessoas doce”; “ela é muito sem sal”; “aquela criança é uma pimenta malagueta” e “fulana é uma pessoa azeda”. Realmente, a linguagem desses terapeutas profissionais nos parece ainda muito crua e indigesta, quando comparadas às saborosas classificações da nossa personalidade que nos legaram aqueles alquimistas do sabor.

Epitácio Rodrigues da Silva

Crônica publicada no Jornal O Povo on-line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/07/10/noticiajornaldoleitorcronicas,3467903/psicologia-de-chef.shtml

segunda-feira, 29 de junho de 2015

ASSIM RESPONDEU ZARATUSTRA.

Em comemoração ao aniversário da cidade do Crato, que no dia 21 de junho completou 251 anos, fizemos uma entrevista com o sábio profeta Zaratustra sobre os aspectos sociais, políticos e religiosos dessa importante cidade do Cariri. Jornalistas responsáveis pela entrevista: João Paulo DiCarvalho e Friedrich “Bigode” Nietzsche.

J. P. DC: Senhor Zaratustra, a maioria dos vereadores aqui do Crato não aprovou as contas do último prefeito. O que o senhor tem a dizer?

Z: A grande questão é saber se os vereadores que não aprovaram as contas sabem mesmo fazer contas.
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Pausa para uma notícia exclusiva:
Atendendo a observação do grande Zaratustra, foi realizada, entre os vereadores que não aprovaram as contas do último prefeito, uma avaliação, medindo os seus conhecimentos em matemática.
Por incrível que pareça, todos os vereadores foram reprovados, sendo que a nota mais alta foi a de um vereador que desenhou um pato, uma borboleta e um calango (lagartixa).
Um vereador, que não quis se identificar, disse que vai entrar com recurso contra a instituição realizadora da prova.
“Isso é um absurdo. As questões não estavam claras, estavam vagas demais e isso prejudicou na hora de responder. Por exemplo, tinha uma questão lá que tinha apenas quanto é 36 dividido por 6. Isso está muito vago. A questão está incompleta. Esses 6 são da oposição ou da situação? Eles vão receber por ter votado contra ou a favor? De qual partido eles são? Como podem ver, as perguntas estavam incompletas e a prova deve ser anulada.”
Voltando para a entrevista:
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J. P. DC: Mestre Zaratustra, e se o resultado da prova for um desastre. Se ele mostrar que os vereadores que não aprovaram as contas não sabem fazer contas. O que devemos fazer?

Z: A saída será fazer uma devassa na câmara e na prefeitura.
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Pausa para uma opinião:
Senhor vereador, o que o senhor tem a falar sobre a devassa que o profeta Zaratustra sugeriu?
“Olha, eu não falo mais sobre aquela sem vergonha. Eu já me separei daquela doida, ela levou meu carro, minha casa, todo mês eu pago pensão o que mais esse estrupício quer?”
Voltando para a entrevista:
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J. P. CD: O prefeito do Crato é acusado de pagar R$ 50.000 para os vereadores. O que o senhor diz sobre isso?

Z: A prima do namorado da vizinha da esposa de um policial que é irmão do amigo de um moto taxista que conhece alguém que trabalha no gabinete do prefeito jurou de pé junto o seguinte: “O prefeito não pagou R$ 50. 000 para os vereadores. Teve vereador que aceitou menos, teve vereador que cobrou mais.”

J. P. CD: Mestre, essa é uma acusação muito grave. Tem como provar isso?

Z: Sim. A confissão dessa testemunha está gravada e pode ser ouvida por qualquer um. Basta pegar um CD do Pablo e ouvir de trás para frente. Ouvidos despreparados podem até não ouvir a confissão, mas achará o som bem mais agradável.
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Pausa para uma explicação:
O sábio Zaratustra estava certo. Escutamos o CD do Pablo ao contrário e não ouvimos p#*%@ nenhuma, mas pense num som bacana!
Voltando para a entrevista:
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J. P. CD: A padroeira aqui do Crato é Nossa Senhora da Penha. Por que então fizeram uma estátua de Nossa Senhora de Fátima?

Z: Essa, nem Nossa Senhora sabe. Twittei para o Papa Francisco que temos o quarto segredo de Fátima aqui. O certo é que ela já realizou o seu primeiro milagre, o “milagre da multiplicação”.

J. P. CD: “Milagre da multiplicação”? Multiplicação de quê? Dos pães?

Z: Não. Multiplicação do valor dos terrenos próximos da Santa e multiplicação dos votos do dono da santa.

J. P. CD: E quanto ao bispo e o escândalo das casas?
Z: Apenas repito as sábias palavras do poeta Paulo Soares, que não é parente do Jô, mas se não parar de engordar vai ficar que nem o apresentador. Ele tem um poema chamado “Cratólica” que diz: “Panico / fez em público / o que o público / faz no penico”.

J. P. CD: E aquela outra pessoa, senhor Zaratustra? Por que ela esconde tanto a mãozinha?

Z: Para cumprir um versículo bíblico que diz: “que a sua mão direita não saiba o que apronta a sua mão esquerda”.

J. P. CD: Mestre, por que a água do bairro Vila Alta, aqui do Crato, é tão suja e imprópria para beber?

Z: Porque o encanamento que leva a água para o bairro passa mesmo embaixo da prefeitura e nesse ponto a água se contamina com muita sujeira.

J. P. CD: O senhor tem algum comentário a fazer sobre o Zona Azul?

Z: É uma zona!

J. P. CD: O que o senhor tem a falar sobre a segurança?

Z: Com relação à segurança pública, em alguns anos, a cidade vai estar no mesmo patamar das metrópoles e grandes capitais.

J. P. CD: Com um efetivo policial mais preparado, mais bem equipado e mais presente?

Z: Não. Com a criminalidade tomando de conta.

J. P. CD: E sobre o prefeito do Juazeiro do Norte?

Z: O prefeito do Juazeiro do Norte...

[ Nota: Zaratustra fica bastante tempo em silêncio. Pela expressão que fez, parece que o grande mestre não conhece o prefeito de Juazeiro do Norte.]

Z: São Luiz Grignion de Montfort, no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, diz: “Deus reuniu todas as águas e chamou de Oceano; reuniu todas as graças e chamou de Maria.” Parafraseando o santo, eu digo: Deus reuniu as 10 pragas do Egito e não deu o prefeito do Juazeiro do Norte. Ele então chamou o Diabo e disse: “Completa para mim!”

[ Nota: pelas palavras que disse, Zaratustra mostrou o quanto conhece o prefeito de Juazeiro.]

Fim da Entrevista.

Quer também homenagear a sua cidade? Mande perguntas para o profeta Zaratustra através dos comentários.

( Observação: Nietzsche não fez nenhuma pergunta porque não parou de chorar. Para mais detalhes, leia o livro Quando Nietzsche Chorou).

João Paulo DiCarvalho

quinta-feira, 25 de junho de 2015

OS LEITORES E A APROPRIAÇÃO INDÉBITA



Estou me convencendo que muitos bons leitores são potenciais apropriadores indébitos. É claro que uma afirmação dessa natureza pede uma explicação. Ainda mais quando todo o discurso atual vincula-se à ideia de que a leitura é uma via fiável do processo civilizador e do crescimento cultural da sociedade. Se o processo civilizatório passa, frequentemente, pela leitura, como posso bruscamente dizer que o leitor é um pretenso ladrão de livros?

Se eu disser que ele se apropria de saberes, dizeres e até sentimentos que são de outros, serei combatido com o contra-argumento que aqueles saberes, dizeres e formas de sentir se tornaram bens públicos, partilhados pelo autor. Nesse caso, não é roubo, mas doação.

Mas devo esclarecer que a razão para eu dizer isso é bem mais modesta. É uma conclusão a que cheguei a partir de um processo indutivo. Dias atrás, encontrei um amigo que fazia sua caminhada vespertina e, após os cumprimentos de práxis, saiu com essa declaração: “ei, tô com um livro teu pra devolver!” Disse a ele: “tudo bem, deixa lá em casa ou no meu trabalho.” Ele concordou. Despedimo-nos e o livro até essa data não chegou ao seu destino.

Hoje encontrei mais duas pessoas que, apesar de situações diferentes, após os cumprimentos, fizeram aquela mesma afirmação: “tô com um livro teu!” Meneei a cabeça afirmativamente, mas um tanto incrédulo a respeito da possibilidade de tê-los de volta. As duas situações me fizeram lembrar de vários títulos que já emprestei e não recebi de volta. A Ética à Nicômaco, de Aristóteles, O segundo tratado sobre o governo, de John Locke, O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, O manual, de Epicteto, o Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, o Da brevidade da Vida, de Sêneca e tanto outros...

Enquanto recordava, dei-me conta da quantidade de pessoas às quais já emprestei livros. Por um momento, fiquei feliz, pois o meu lado utópico e até idealista me fez crer que estava contribuindo para o processo civilizatório de muita gente, porém como quase sempre os livros não voltam, estou começando a duvidar dessa civilidade que gera apropriação indébita.

Epitácio Rodrigues da Silva

Crônica publicada na página da Revista da Cultura. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-06-25/OS_LEITORES_E_A_APROPRIA%C3%87%C3%83O_IND%C3%89BITA.aspx

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O SENTIMENTO DE RAIZ


Erivaldo Osmar e Patrícia Siqueira namoram há 4 anos. É difícil (para não usar impossível) vê-los se beijando ou andando de mãos dadas. O casal é bem discreto. Até fotos do casal são difíceis de encontrar e nem no Facebook eles fazem questão de colocar que estão “em um relacionamento sério” (e pensar que essa não atualização de perfil é causa de tantas brigas entre casais que se beijam a vista de todos!).

– Cada um tem seus limites e é preciso respeitá-los. Ela não gosta de exposição, de aparecer. Para mim não faz diferença, é até melhor, afinal, não temos que dar satisfação a ninguém. – disse certa vez o Erivaldo quando perguntado o porquê do casal ser tão reservado.

Encontrei Erivaldo mês passado. Vinha trazendo uma sacolinha com uma coxinha de frango.

– É para a Patrícia!

Preciso informar que é algo bem comum encontrar o Erivaldo levando comida para a Patrícia ou ver, aos sábados, o casal jantando em um restaurante ou pizzaria. Erivaldo é bastante preocupado com a alimentação de sua amada.

Por sua vez, Patrícia cuida da imagem de seu amado. Quando conheci Erivaldo, ele tinha o estilo largado, desleixado de se vestir. Digamos que Patrícia deu um upgrade no visual dele, melhorando não só o seu guarda roupa, mas também a postura e o seu jeito, fazendo com que Erivaldo cuidasse mais de si. “Levanta a cabeça”, “corta essas unhas”, “tira essa barba” eram recomendações que ouvíamos com frequência.

– O Erivaldo só quer ser o Gonzaguinha! – sempre dizia Patrícia sobre o jeito de vestir do namorado.

Para quem não entendeu a comparação, resumirei com a explicação que a própria Patrícia usava.

Ela leu (Ah, e outra característica desse casal é que ambos leem muito!) no livro Gonzaguinha e Gonzagão: uma história brasileira, da jornalista Regina Echeverria, que o filho do Rei do Baião tinha o hábito de se vestir mal. A esposa do cantor não gostava muito disso e certa vez, quando a casa deles foi assaltada, ela aproveitou para dar sumiço nas roupas do marido usando o álibi do assalto e assim ter a desculpa de renovar o guarda roupa dele.

– Qualquer dia eu vou chamar esse ladrão para fazer um assalto lá na casa do Erivaldo. O Erivaldo só quer ser o Gonzaguinha. – brincava Patrícia.

Lembrei do casal um dia desses quando conversava com um amigo professor de filosofia. Dizia ele sobre o “sentimento de raiz”, sentimento que todos temos e sob o qual construímos nossas relações.

Como sou lento para entender questões filosóficas, pedi que ilustrasse sua explicação com exemplos e utilizasse o casal Erivaldo e a Patrícia, nossos amigos em comum.

– O Erivaldo pode brigar com a Patrícia, pode um dia ser grosseiro com ela, pode até tratá-la mal, mas isso tudo perderá forças porque há um sentimento enraizado dentro do Erivaldo. É o “sentimento de raiz” e as ações que nascem dele serão mais fortes, mais intensas e mais constantes. Qual é o “sentimento de raiz” daquele casal? O cuidado. O que há por trás das ações deles dois? Dele sempre preocupado com a alimentação dela? O cuidado com a saúde. Dela sempre preocupada com o jeito dele vestir? O cuidado com a imagem e o zelo por ele mesmo.

“É muito difícil negar e trair o “sentimento de raiz” porque, além de estar bem fundo em nós, ele é a força motriz da maior parte das nossas ações.”

– É o “sentimento de raiz” quem nos dá nossa identidade? – perguntei.

– Não, mas é ele quem nos diferencia.

– Pode esse “sentimento de raiz” morrer?

– “Tudo o que não alimentamos morre”, disse o poeta. Mas, tudo o que morre dentro de nós pode renascer, diz a psicanálise.

– É por isso que temos tantos relacionamentos relâmpagos? De tão superficiais que são as relações hoje, não há um “sentimento de raiz”?

– Não podemos generalizar, é preciso investigar cada caso, mas veja bem: o sentimento nem sempre é bom. Há casais que brigam muito. Se formos ver, talvez o “sentimento de raiz” desse casal seja o poder, o sentimento de posse, a desconfiança ou o ciúme. Há casos em que o “sentimento de raiz” da pessoa é apenas o desafio da conquista. Depois que ela conquista alguém, perde todo o interesse.

As palavras do meu amigo trouxeram reflexões. O amor sempre foi objeto de estudos, palestras, livros, filmes... mas muitos deles abordam a questão de modo superficial. Então temos a Filosofia, livro empoeirado e esquecido na estante, que nasce da pergunta “quem somos nós?”, sempre nos propondo o conhecimento de si.

E diante de tantas receitas, esquemas e soluções mágicas que hoje vemos sobre a questão dos relacionamentos, a Filosofia propõe com sua voz antiga e sábia “Conhece-te a ti mesmo”. Antes de saber o que é o amor ou quem é o nosso amor, mais importante e significativo é descobrir e conhecer o sentimento que trazemos enraizado e que por vezes nos governa, o nosso “sentimento raiz”.

“Preciso reler o Banquete, de Platão”. Penso enquanto espero minha namorada Luci. Vamos sair justamente para jantar com nossos amigos Erivaldo e Patrícia, um casal que não se revela aos outros, mas se revela a si.

Espero não tê-los exposto demais nessa crônica, já que eles são tão reservados, mas (acredite!) você que agora me lê precisa conhecê-los. Afinal, todos nós temos uma Patrícia SIQUEira (PSIQUÉ: “mente”, “alma”) que necessita enfrentar mil desafios para encontrar e ficar com o seu ERivaldo OSmar (EROS: “amor”).

João Paulo DiCarvalho

(publicado em: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-06-15/SENTIMENTO_DE_RAIZ.aspx)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

A LEI ANTIFUMO E A CONSPIRAÇÃO


      São poucas as coisas neste mundo que eu não gosto, mas uma delas, com toda certeza, é a fumaça de cigarro. E para piorar as coisas, o meu olfato consegue sentir de longe esse cheiro desagradável e asfixiante.
      Por isso não vou negar: comemorei muito a aprovação da Lei Antifumo nº 12.546/2011, que proíbe o uso de cigarros em lugares públicos e também a campanha contra qualquer propa ganda propositiva a respeito do tabagismo. As campanhas são todas contra, inclusive nas embalagens do produto. O que dizer daquelas imagens nas caixas de cigarro? Lembro de uma que é um rosto feminimo deformado. Isso nenhuma mulher aguenta. Mas aquela destinha aos homens é bem pior: um homem despido respresentando um impotente sexual e um dedo polegar gigante apontado para baixo diante da sua região pubiana, que, mas do que esconder suas genitálias, é a reppresentaç~ao mais aterrozizante do imaginário masculino.
     A marcação é tão cerrada que as empresas de tabagismo têm que recorrer a estratégias como patrocínio de filmes de época para garantir a propaganda indireta: todos os atores aparecem fumando como um caipora.
     As razões para essa marcação contra o tabagismo, dizem, está relacionada aos diversos tipos de câncer aos quais o fumante passivo e ativo estão sujeitos. É uma questão de saúde pública, afirma-se. Mas, conversando esses dias como um amigo, fumante, que encontrei numa banca de revista, ele apresentou uma teoria bastante inusitada. Pra ele, isso tudo é uma conspiração feminina. Disse-me que quando era garoto - e os trintões e quarentões devem lembrar-se disso - conheceu vários casos de maridos que saíram à noite de casa para ir à budega da esquina comprar cigarro e nunca mais voltaram. A situação ficou tão séria que algumas mulheres não deixavam o cigarro do marido faltar para não correr o risco. Verdade seja dita - brincou - tinham aquelas esposas que faziam até promessa para o marido (encosto) ir comprar cigarro e errar o caminho de casa, mas esse tipo de pedido vai contra o Direito Canônico, que diz que o casamento é indissolúvel, então os santos não aceitavam a promessa.
     Olhe, continuou ele, essa nossa geração dos pós-fumantes está cheia de mulheres que cresceram sem a presença do pai e cientes de que foi por causa do cigarro. Então, foram elas que começaram a dizer que fumar era démodé, que não gostavam de beijar homem com hálito de cigarro, tiveram até aquelas ligadas à psicanálise espalhando por aí que o cigarro era um símbolo fálico e que colocar um cigarro na boca era a manifestação de um desejo erótico reprimido pela cultura... Mas o resultado dessas estratégias demorava muito a surtir efeito, então elas resolveram, unidas, apelar secretamente para as esposas dos parlamentares. Do dia para noite as mulheres dos deputados e senadores começaram a insistir pra que eles votassem essa lei Antifumo. No início, os parlamentares até ignoraram os pedidos, mas foram coagidos a votar porque elas começaram uma “greve de prazeres” e a se negavam a aparecer em públicos ao lado do marido. E como a sociedade brasileira ainda é muito conservadora, a imagem da família unida, feliz e perfeita é fundamental para um político angariar votos. Alguns políticos até resolveram o problema da “greve de prazeres” arrumando amantes, mas como não podiam levar suas amantes aos palanques como representantes das esposas, eles acabaram cedendo à pressão das suas mulheres. E foi assim que elas conseguiram aprovar essa lei.
     Quando esse amigo terminou de expor sua teoria de conspiração, comprou uma dessas revistas sensacionalistas, despediu-se e seguiu o seu caminho. Fiquei parado, pensando nessa teoria de conspiração. Tudo naquele discurso parecia muito bem arrumado e encaixado: será que houve mesmo uma conspiração? Inicialmente, fiquei muito inclinado concordar com ele, principalmente porque a Lei Antifumo foi sancionada depois que uma mulher assumia a presidência da República. Mas depois, percebi que para ele essa lei era uma coisa ruim, então comecei a desconfiar que podia também ser apenas mais uma conspiração masculina para justificar a corrupção política, culpabilizando as mulheres e repetindo, mais uma vez, aquela famosa tática em vigor desde o tempo de Adão: “a culpa é da mulher...” (Cf.Gn, 3, 12).
Epitácio Rodrigues da Silva
prof_epitacio@hotmail.com
Crônica publicada no Jornal O povo on line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/06/01/noticiajornaldoleitorcronicas,3447141/a-lei-antifumo-e-a-conspiracao.shtml e na página da Revista da Cultura on line. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-06-01/A_LEI_ANTIFUMO_E_A_CONSPIRA%C3%87%C3%83O.aspx

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...