domingo, 15 de fevereiro de 2015

UM SENTIDO PARA VIVER


  
Hoje peguei despretensiosamente o livro Nietzsche para estressados, de Allan Percy, logo no primeiro capítulo estava estampado o titulo “Quem tem razão de viver é capaz de suportar qualquer coisa”. É claro, o texto que segue abaixo do título nada tem de Nietzsche, mas de Viktor Frankl, na obra Em busca de sentido, na qual narra sua vida de prisioneiro nos campos de concentração nazista e a descoberta da Logoterapia (ou terapia pelo sentido), uma terapia centrada na importância de se encontrar um sentido para a vida como caminho para superar as adversidades e os traumas.
Era para ser uma leitura descontraída, mas a breve referência a Viktor Frankl me fez lembrar as páginas do seu livro, nas quais descreve as condições subumanas que viviam as pessoas e das passagens que fala do amor à esposa como razão para continuar vivo. Depois que se lê aquele livro, soa como “discurso menor” ouvir alguém, em condições normais, queixar-se que sua vida não tem sentido. Concordo plenamente! A vida humana não tem sentido mesmo! Por isso ela é tão especial. Viver é uma experiência aberta. Estar vivo, de forma consciente e livre, como é o nosso caso, implica ter a responsabilidade de construir o sentido para a sua própria existência. Gosto do jeito que o filósofo cearense Manfredo Oliveira, num livro intitulado Sobre a Fundamentação, diz essa verdade: “O homem é uma questão, porque ele não é simplesmente, mas se experimenta como tendo que conquistar seu próprio ser. Sua especificidade é a indeterminação originária: nem os instintos, nem suas próprias instituições conseguem determiná-lo de forma definitiva”. Não determinado de antemão em seu ser, ele tem que tomar decisões sobre a sua própria vida, sobre o rumo da sua existência. É nessa luta contra a natureza, que vamos abrindo a clareira do mundo humano, lugar de construção do sentido da nossa existência individual e coletiva.
Existo! A vida pulsa em mim! Agora o sentido que darei a isso, a finalidade ou destinação não me é dado a priori. É uma tarefa que, realizando-a, realizo-me. Se parecer absurdo nascer, crescer, reproduzir e morrer, a minha existência não precisa ser somente isso. Existir é estar lançado num universo de possibilidades, das quais sou impelido a escolher algumas, descartar outras e sem a certeza de que estou fazendo a escolha certa. Existir é uma construção de si, na qual se tem sempre a possibilidade de falhar. “O homem é um ser de risco: ele pode não realizar seu ser”, lembra Manfredo. Por isso, a pessoa humana possui a capacidade de fazer antecipações racionais das consequências e riscos das escolhas, ponderar as possibilidades antes de decidir, rever as escolhas e os caminhos, mudar o rumo da sua vida e da sua história.
A vida não tem sentido porque é nossa tarefa maior construí-lo. Por isso, quando alguém me diz que a sua vida não tem sentido, não será grosseira dizer-lhe com toda boa educação: se sua vida não tem sentido, de certo modo, o problema é seu.


Epitácio Rodrigues, 08,02, 2015.


(Crônica publicada no Jornal O Povo On line, link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/02/23/noticiajornaldoleitorcronicas,3397039/um-sentido-para-viver.shtml >  e na Revista da Cultura, link < http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-02-23/UM_SENTIDO_PARA_VIVER.aspx >. E postada também pelos redatores do interjornal AchixClip, link: < http://www.achixclip.com.br/noticia/31795315/ultimas-noticias/um-sentido-para-viver/.>

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

PERGUNTAS DE UM INSONE



Quase toda noite fico horas implorando ao sono que venha ao meu encontro, mas só sinto insônia e impaciência de estar acordado. Eu realmente gostaria de saber: afinal, para que serve uma insônia?
Enquanto o mundo dorme, eu estou desperto. Aproveito o grande silêncio para dialogar com filósofos, teólogos, sociólogos, pensadores políticos, humanistas; enfim, o interlocutor é escolhido pelo acaso. Entro na minha biblioteca quase sempre recordando as palavras de Maquiavel: numa carta a um amigo, ele conta que toda noite vestia sua roupa de gala e passava quatro horas no seu escritório conversando com os grandes homens do passado.
Hoje, mais uma vez insone, peguei o livro Introdução à Filosofia, de Roland Corbisier, um filósofo brasileiro. Não sei ao certo porque o escolhi, talvez para evitar temas teológicos. Ontem à noite li um salmo que dizia sobre Deus: “não dorme e nem cochila aquele que é o guarda de Israel”. Não quero ter essa mesma “sorte”. Se a insônia for a ocupação de quem está no céu, confesso que não me agrada a possibilidade de, após uma vida inteira com insônia, descobrir que a eternidade é apenas um perpetuar desse estado. Aliás, eu espero mesmo que esse negócio de ver e ouvir tudo, o tempo todo, seja só para Deus. E que para nós, pobres humanos, morrer seja, como disse Mauro Quintana, “finalmente poder dormir de sapatos”. Afinal de contas, quem dorme antes mesmo de tirar os sapatos não deve ter problema de falta de sono.
Bom, o fato é que, entediado demais para ler sobre o Céu, retomei uma leitura da semana passada. O livro estava marcado na página 126. Ali podia se ler: “o homem pergunta. E, por que pergunta? Porque precisa perguntar. Mas, por que precisa perguntar? Precisa perguntar porque não sabe e precisa saber, saber o que é o mundo em que se encontra e no qual deve viver.” E logo em seguida apresentou o veredicto: “para o ser humano o conhecimento não é facultativo, mas indispensável, uma vez que sua sobrevivência depende dele”.
Concordamos sobre isso: realmente o homem é um ser que pergunta. Talvez essa mania de arguir, de indagar seja porque o perguntar e o existir precisem andar juntos. Aliás, a cada insônia me convenço mais de que o ser humano é uma pergunta cuja resposta foi apenas balbuciada e está longe de ser satisfatoriamente respondida. Perguntar é a manifestação do nosso incontido desejo de saber viver. Desejo que nos move no projeto de ser-mais o que precisamos ser e sabemos que ainda não somos. O homem concreto, comum, embora incompleto, anseia por realizar-se, por completar-se, por uma plenitude: o ser humano de hoje deve ser superado, o que ele deve ser é ainda um projeto inconcluso.
Queria encontrar uma resposta, mas Corbisier só me falou da necessidade da pergunta. O problema de toda pergunta é que a resposta que a sacia abre o horizonte para outras tantas... Por falar em horizonte, o sol já começa a despontar. Um novo dia se inicia e minha pergunta continua sem resposta: afinal, para que serve uma insônia? Talvez, à noite, leia sobre psicologia. Porém, estou me convencendo de uma coisa: se essa situação não mudar logo, hoje sou um homem insone; amanhã serei ou um homem insigne ou um homem insano.

Epitácio Rodrigues, 18/01/2015
(Crônica publicada na Revista da Cultura, 18/02/2015 -  
link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-02-18/PERGUNTAS_DE_UM_INSONE.aspx).



O PERDÃO





Dias atrás, no corredor da escola, um aluno me perguntou se eu achava justa a atitude do pai na “história” do filho pródigo. Apesar de achar que o assunto diz respeito mais à Teologia do que a Filosofia, comecei a explicar que o objetivo da narração era evidenciar a misericórdia de pai. Mas ele insistiu:

- O senhor acha certo ele perdoar o filho mais novo? Será que ele foi justo com o mais velho?

Antes que pudesse responder, chegamos ao portão da escola. Aliás, esse é o problema das dúvidas de corredor. Elas nunca terão o tempo necessário para ser adequadamente respondidas. Mas o questionamento me fez pensar sobre o que se entende por perdão.

Pra começar, o perdão só existe como ato voluntário de alguém a outrem não por seus méritos, por isso é que ele revela o lado bom do ser humano. Sei que algumas pessoas dizem que esse ato é mais uma manobra para esconder a própria fraqueza: perdoar é para os fracos! Uma expressão da covardia de quem, sem ter coragem de devolver na mesma moeda, assume esta postura débil, mascarando-a de bondade.

O perdão é muito mais uma experiência de libertação, profundamente vinculada ao fenômeno da ofensa e do rancor. Toda ofensa supõe: uma relação interpessoal; um ofensor e um ofendido; uma ruptura ou crise dessa relação intersubjetiva. A ofensa, uma vez interposta nessa relação, impõe-se igualmente um culpado, frente ao qual tem-se duas alternativas extremas e uma intermediária. Situações extremas e proporcionalmente inversas: a vingança e o perdão; a intermediária, a justiça: “a cada um de acordo com o que lhe compete”.

Deseja vingança quem está rancorosamente estagnado no fato e momento da ofensa. O rancor fixa-nos na ofensa: aprisiona-nos naquele momento, naquele espaço e naquele fato. Mas não é só isso: vivemos aquele momento aprisionados pelo rancor, mas a pessoa que nos ofendeu permanece prisioneira nele dentro de nós. Vê-la, pensar nela é voltar á mesma cena, ao mesmo fato ao mesmo momento: o rancor é uma das prisões sem muros. Deseja a justiça quem se sente prejudicado pela ofensa e quer ser reparado do seu prejuízo material ou moral.

No caso do perdão é uma ação libertadora, voluntária, imerecida e consciente. Por isso, perdoar é uma das expressões mais eloquentes manifestação da capacidade de transcendência do ser humano. A ofensa sofrida causa grandes feridas na sensibilidade humana, guardar o rancor e alimentar o desejo de vingança são nossas compulsões mais naturais, não há nada de extraordinário nisso. Já o perdão é ato imerecido (é dispensado a quem é culpado da ofensa), voluntário (só acontece se você quiser) e consciente (você não esquece o dano causado) de rompimento com o rancor. É por isso que se chama perdão (per - para; donare - doar).

De tudo o que foi dito, ainda que de modo sumário, fica evidente para nós que é mais fácil alimentar a vingança do que perdoar. Assim, aos que pregam ser o perdão um sinal de fraqueza, devemos ao menos fazê-los perceber que é preciso muita coragem para empreender um ato tão bravo de covardia. O que não é o mesmo que esquecer. Pois como dizíamos, o perdão é um ato consciente, de tal modo que, longe de ser um esquecimento da ofensa, é sobretudo um processo de libertação do outro, mediante a experiência de auto-libertação de si. Perdoar é tomar a resoluta decisão de abrir essa prisão sem muros interior e dizer ao outro: ide em paz!
Epitácio Rodrigues
(Crônica publicada no jornal O Povo, Fortaleza-CE, dia 16/01/2015 , link : http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/01/26/noticiajornaldoleitorcronicas,3383121/o-perdao.shtml)

O DOMINGO



 

Acordei bem cedo. Era uma daquelas manhãs de domingo ensolaradas que nem de longe lembrava a noite de intensa chuva que a antecedera, a não ser pelo cheiro de terra molhada.
Arrumei-me às pressas e foi à missa às 06h30min da manhã, pois queria ter o dia inteiro livre de qualquer preocupação. Na igreja, durante toda a missa, sentia o cheiro da terra molhada que entrava pelas portas laterais e contagiava o ambiente. Dava para ouvir o cantarolar dos pássaros como um hino de louvor a Deus por aquela manhã tão bonita. Esforçava-me para me concentrar nas palavras eruditas do padre, mas a terra molhada a exalar o seu olor, o sol a irradiar o ambiente, o canto alegre dos pássaros, tudo era infinitamente mais eloquente, tudo isso falava de alegria, de transbordamento, de vida.
Das palavras do pregador, só uma frase me despertou do sonho poético: “a família é uma benção de Deus”. “A família” esta palavra ecoava em minha mente como um mantra suave.
Na simpática Londrina, longe qualquer parente, comecei a me sentir um estrangeiro rodeado por rostos desconhecidos. Aos poucos, deixei-me levar pelos ventos suaves das lembranças. Paulatinamente, iam surgindo as imagens dos meus entes queridos. As cenas de minha infância passavam diante dos olhos como um filme nostálgico. Recordei-me do quanto estava longe de minha família: “longe, mas não distante!” dizia no meu íntimo como uma espécie de justificativa ou consolo para aquietar a saudade que se alojara no meu coração.
- Ide em Paz e que o Senhor vos acompanhe! - disse o padre, quebrando o elo nostálgico que me ligava aos meus familiares.
Só então, percebi que a missa acabara. Segui, ainda absorto, a procissão que retornava a sua casa. Pela primeira vez, não fiquei incomodado com os passos lentos das velhinhas na saída da Igreja. Eu não estava ali, o vento que me levou ao passado ainda não havia me devolvido ao presente.
- O senhor vai almoçar fora? Perguntou a senhora que trabalhava na pensão. O espanto com a pergunta, fez-me perceber que estava de volta à pensão, sentado numa das mesas do refeitório. Permaneci em silêncio. Pensei no sol brilhante lá fora, no cheiro da terra molhada, no canto do galo de campina, lembrei dos tempos pueris em minha terra natal, quando saia nas manhãs de domingo, para brincar de bola, conversar nas esquinas e desfrutar destes pequenos prazeres de uma vida interiorana. O tempo as reduzira a imagens fugazes e fugidias, evocadas com muito esforço pela memória. Foram apenas alguns segundos de “recuerdos”?
- Deus meu, como pode se reduzir uma vida inteira a segundos de recuerdos? Como é cruel a memória!- balbuciei para mim mesmo.
- O que a senhora disse?! Perguntei tentando voltar à realidade.
- Senhor, eu perguntei se vai almoçar fora.
- Sim, vou almoçar fora hoje! Respondi resoluto.
Todavia, não queria fazer com fizera todos os outros domingos. Sair para um restaurante, sentar-me solitário à mesa e engolir uma lasanha. Era um ritual deveras desprezível.
- A família é uma bênção de Deus! - voltou a fazer eco na memória as palavras do pregador. Levantei-me da mesa e foi ler as notícias, precisava fugir deste eco incômodo. Vi notícias de guerra na Chechena, de armas atômicas na Coréia do Norte e o perigo de uma terceira guerra mundial; os sintomas depressivos advindos da falta de empregos causada pela globalização.
- É muita destruição para uma manhã de domingo – pensei.
Olhei as horas, faltavam quinze minutos para as oito. Tirei o carro da garagem e sai.
- Para onde vou? Pensei em fazer uma visita a uma senhora muito amiga, mas não recordava o endereço; depois de algumas voltas sem sucesso preciso, resolvi desistir de tentar encontrar a casa. Lembrei-me de um casal de amigos por quem nutria grande apreço, mas os havia visitado na noite anterior.
- Não! é preciso dar às pessoas um pouco de liberdade para aproveitar com a família. – pensei!
Quando tudo parecia sem jeito, recordei-me de uma família que sempre me convidava para suas comemorações de aniversários. Fiz a curva e dirigi-me para lá. Já não precisava andar em círculos de quadra em quadra na esperança de encontrar alguém. Quando cheguei em frente à casa, as portas estavam fechadas.
- Eles foram para o sítio- disse o vizinho da esquerda.
Entrei no carro, liguei, fiz a curva e voltei à pensão. Senti o sol aquecer a minha pele, ouvi o cantar muito alegre dos pássaros, aspirei ao odor de terra molhada. Tudo estava tão vivo, tão radiante, tão alegre, mas tão longe de minha existência.
Sai do carro, abri a porta de meu quarto e deitei sobre a cama. Pensei no sol, na terra molhada e nos pássaros a cantar e adormeci com um mantra incomodo, mas muito real: - A família é uma bênção de Deus(...) Ide em paz e que o senhor vos acompanhe!
E assim adormeci, sozinho, recordando uma verdade que por mais que me maltratasse, não podia ser outra.
- Família é uma bênção de Deus (...) Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe!

Epitácio Rodrigues, 12/01/2015 
(Crônica publicada no jornal O Povo on line, em 12/01/2015. Link:http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/01/12/noticiajornaldoleitorcronicas,3375930/o-domingo.shtml 



Participação em Coletâneas

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