segunda-feira, 30 de março de 2015

ENTREVISTA COM O ARTISTA




“Não diga meu nome. Não diga o nome de nenhuma obra minha nem da arte que faço”.
Foi com essa exigência que o artista começou a entrevista. Minha primeira pergunta, claro, foi saber o motivo para isso.
“Um jogador de futebol quando é notícia por conta das declarações, das farras, da vida amorosa, do cabelo, quando é destaque mais pelas coisas que faz extra campo do que pelas coisas que faz no gramado, pode acreditar, é sinal que começou a decadência desse atleta. A mesma coisa é o artista. A sua arte fala por ele. Se para ser destaque na mídia eu tiver que dizer algo polêmico ou falar mal de alguém, que agora parece moda, então eu estou perdido como artista. O Artista é a sua obra. Quem sou eu? Eis a minha arte. Eu sou, enquanto artista, a minha arte”.
Em seguida, o entrevistado toma o lugar do entrevistador. O artista pergunta para qual jornal eu trabalho. Digo que nenhum. Só queria umas instruções para ser escritor. Talvez até escreva uma crônica sobre aquele momento.
O artista dá suas instruções. “Leia. O melhor professor para o escritor é o livro. Mas leia tudo. Não se prenda a nenhum padrão. Os livros lhe ajudaram a ler o texto que está em sua mente, que está dentro de você. É esse texto que você deve escrever. Não se prenda. Sem liberdade não há criatividade e a criatividade é a mais fecunda das mães da arte”.
“Outra coisa: não entregue tudo mastigado ao leitor. Que ele exercite o cérebro para entender”.
“Por fim, sorte! É preciso sorte para ter leitores e mais sorte ainda para alguém gostar do que escrevemos”.
Peço ao artista que fale sobre o seu começo.
“Foi difícil. Eu não sabia direito, eu não conhecia a arte. Eu tinha uma certa noção da técnica, mas da arte em si, do seu significado, da sua profundidade, não. Era como se eu fosse um escritor escrevendo um romance sem saber o que é um romance; um bailarino que vai criando movimentos sem saber que dança é aquela e desconhecendo também o que é a dança; eu era um homem do Paleolítico rabiscando e pintando as paredes das cavernas sem saber que estava fazendo arte. Eu operava uma máquina que não conhecia. Não digo da técnica, mas da noção. O que é a arte, qual seu alcance? Eu não fazia ideia”.
Pergunto para ele se já sabe a resposta. “O que é arte? Qual o papel do artista? Olha, não há uma resposta pronta para isso e ainda bem que não há, do contrário a arte seria estéril, não poderia se reinventar. Eu fui encontrando respostas, minhas respostas, mas não espere que eu as diga aqui. A arte que eu produzi com a ajuda delas é mais importante”.
– E quando você não tinha essas respostas. Até que ponto não saber o que é arte lhe atrapalhou?
“Por incrível que pareça, não me atrapalhou, pelo contrário. Fez com que eu aprendesse a ouvir e seguir meu instinto, minha intuição. A arte está dentro da gente. É preciso saber conhecê-la para extrair. O pintor tira a pintura de dentro dele. O escritor tira o poema de dentro dele. Não me assustará nada se por um acaso conseguirmos descobrir que o melhor livro, o melhor poema, a melhor pintura nunca foi escrita, nunca foi pintada, pois ficou perdida na mente de alguém que por algum motivo não soube ou não quis pintar, escrever, tirá-la de dentro. É igual à fala final do Pasolini em O Decameron, depois que termina a pintura”.
– Qual (quais) o(s) problema(s) que a arte enfrenta?
“Dois grandes problemas: a superestimação e o subestimado. A superestimação é um problema do artista. Muitas vezes, ele se acha um deus e essa vaidade atrapalha, porque o afasta da principal das críticas, a crítica de si. Ela cega o artista, que fica achando que a sua obra é muito boa, quando na verdade não passa de puro lixo”.
“Já o subestimado parte do público. Ele subestima a arte. Ele não vai mais a um teatro, a um museu, não lê mais. Essa crônica que você escreverá sobre essa entrevista, boa parte dos que comprarem o livro, não lerá”.
Informo que não escreverei um livro, que a postarei na internet, num site de jornal, revista, blog.
“Se nem o livro, que custou dinheiro, a grande maioria que compra lê, imagina o texto de graça da internet. Quem vai ler esta crônica? Ninguém. E não é porque a crônica está mal escrita, não. Ainda que bem escrita, não lerão porque não tem o hábito de ler e isso está longe de mudar”.
“Na idade média, acreditava-se que a Terra era plana. Hoje, para muita gente, o mundo continua plano e retangular, do formato de uma tela plana de uma TV, de um computador, de um celular. Sei das benesses da tecnologia, não quero fazer um discurso moralista, mas é fato: pouquíssimas pessoas têm lá no histórico da internet que acessou recentemente (ou alguma vez!) o Louvre. Igual à alegoria da caverna, são muitos os prisioneiros de um mundinho virtual que ignoram saber que existe vida além do Face, do Whats, do joguinho...”
O artista termina sua fala desejando sorte para mim.

...

Eis a crônica sobre a entrevista com o artista que eu pude tirar de mim. Acreditem, ela estava mais saborosa quando a sonhei.

João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com
(Crônica publicada na Revista da Cultura on line link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-25/ENTREVISTA_COM_O_ARTISTA.aspx )

sábado, 28 de março de 2015

DESPEDIDA

Nesta velha casa em metamorfose, já vivi muitos invernos. E os que comigo habitaram-na, ao longo desse tempo, juntos, enfrentaram muitas lutas. Entre essas paredes que hoje abrigam esse caixão com esse senhor, ali deitado, que parece dormir, passei muitos momentos bons e muitos momentos difíceis. Cheguei aqui pela primeira vez num misto de alegria e dúvida. Era mais um monturo que um terreno, mas, foi o que consegui comprar.
Em várias noites pretéritas meus amigos aqui vieram. E comemoramos. Uns traziam vinho, outros conhaque. Um amigo pedreiro me ajudou e juntos, eles, o conhaque, o vinho e eu conseguimos encher as bases. Havia mais boa vontade que pedra, concreto, cimento e ferro. Também havia mulheres que ajudavam a servir as coisas, o vinho, o conhaque, os tijolos e a massa. Elas ainda dançavam alegremente. Uma amiga trouxe um lenço, outra pediu a um amigo dinheiro. Disse que era pra fazer um café. Outra trouxe flores que colheu, se bem me lembro, nos jardins alheios. Pequeninas flores, amarelas, vermelhas, brancas. Não são daquelas luxuosas das floriculturas, mas dessas que aparecem por tudo que é lugar.
Tudo isso alegra o coração de um homem. Não obstante isto aconteça num funeral. A certeza do tempo que passou ainda não é certa. E como é certa. Aquele aparelho de som ali calado, já dançamos muitos escutando velhas canções, assim espantávamos os fantasmas da pobreza. Hoje o fantasma quer ficar. Não me conformo, não obstante a vida difícil que tínhamos. Uma amiga pegou um lenço e enxugou as lágrimas. Essa atitude me causa estranhamento, agora que não há a possibilidade de julgamento dos vivos, ouso de dizer, que é um choro suspeito.
Está chegando o fim da festa, todos estão indo embora, eu fico sozinho. Noutros tempos tinha companhia de sobra. Nenhuma tão séria. A inconstância é inimiga do amor. Mas amei também. E dessa árvore não houve frutos. Nem flores. Não consigo sair até a porta e sinto o obscuro dever de ficar aqui. Se pelo menos o senhor do caixão ainda estivesse aqui. Mas não. Os outros que saíram levaram-no. Em meio a choro e soluços levaram-no.
Eu já disse enfrentamos muitos invernos aqui? E secas também! Houve época que éramos farrapos de gente. Quando o tempo melhor sorriu quis uma companheira, mas já não inspirava a confiança de ninguém. Bebíamos desde a dor da miséria à satisfação da bonança, bebíamos tudo e tudo acabava, nada é pra sempre. Esses móveis que aqui estão: sofá velho, televisão, mesa, cadeiras, fogão, panelas, cama e tantos outros necessários ao funcionamento de um lar habitado; sinto que não precisarei usar nenhum. Quero dormir e não tenho sono. Tenho sono e tenho medo de dormir. Aliás, meu medo é acordar numa manhã cinzenta e triste de outono. O vento gélido vem esbofeteando a porta. Há três horas que todos saíram seguindo caixão. Ninguém voltou! Por que será? Se pelo menos aquele senhor que estava no caixão estivesse aqui.
Hesito sobre a possibilidade de usar algum aparelho. O computador está ligado. Quem o ligou? Lembro que enquanto muitos choravam uma jovem estava sentado em frente a esse aparelho. Chego mais perto. Ainda tenho medo dessa máquina. Ela sempre me assustou com essa capacidade da onipresença dissimulada. Chego mais perto, e veja na tela a página de uma rede social. A página é da jovem. Detenho-me um instante sem querer ler o que diz aquela mensagem em sua linha do tempo. É inevitável. Chego mais próximo, vejo algumas fotos, sou eu, meus amigos, sou eu sorrindo. Quando leio a mensagem em letras chamativas, a declaração daquilo que não queria entender: LUTO!!! Aquele senhor no caixão era eu.
Francinaldo Silva Dias

quarta-feira, 25 de março de 2015

SÓ PALAVRAS


Palavras, palavras e mais palavras! Nos últimos tempos tem crescido em mim uma estranha sensação de banalidade léxica. É quase uma vertigem como a do Antoine Roquentin sartreano. Cada vez que saio de casa para o trabalho ou outra atividade extramuros sinto-me como se estivesse entrando num caótico labirinto de frases e palavras e sem o novelo de linha de Ariadne, que me ajude a encontrar um caminho.
Por todos os lados, em forma de frases gastas, jogadas ao chão ou aprisionadas em papeis, palavras voam sem direção; às vezes, pichadas em paredes como aranhas disformes e contraventoras ou transformadas em avisos colados em postes, a fazer promessas de felicidade e prosperidade demasiado suspeitas: “trago seu amor de volta em cinco dias!”; transmutando-se em anúncios impressos em outdoor que querem me seduzir a comprar a futilidade maquiada de garantia de sucesso.
Nas ruas e avenidas, elas correm, ultrapassando à direita e ou esquerda da pista, em carros e motos velozes que rumam, sem rumo, movidas por pensamentos equivocados para os quais correr é sinônimo de liberdade.
Palavras, palavras e mais palavras! Vejo-as mergulhadas nos corpos das pessoas apossando-se da sua epiderme como um “cobreiro” discreto: chamam a esse “empossar” de “tatoo”. Vejo-as também misturadas às roupas, bolsas, sapatos, tênis, sandálias, cabelos e cabeças.
Para todos os lados, o horizonte que meus olhos alcançam parece dominado por um deserto de palavras: sejam grandes, pequenas, coloridas, mixadas e ensurdecedoras; ditas, sussurradas, tecladas e gritadas; dinâmicas, brilhantes ou pulsantes. Todas elas são ermitãs de sua própria condição dizente, docente, eloquente.
Conta-dicção do dito: nada dizer! Pois, o paradoxo de tudo isso é que, por alguma razão, mesmo me vendo cercado de palavras, tenho sempre uma incômoda sensação de que, para além dos invólucros criativos que as revestem, o conteúdo parece cada vez mais vazio. Assim, ao final do percurso, prevalece sempre a mesma impressão de que são apenas isso: palavras que já não conseguem dizer mais nada.
São apenas palavras.
Só palavras!
Epitácio Rodrigues 
prof_epitacio@hotmail.com
(Crônica publicada na Revista da Cultura on line. link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-25/S%C3%93_PALAVRAS.aspx ).



sábado, 21 de março de 2015

INESPERADA HISTÓRIA INESPERADA



Não foi comigo. Nem com quem me contou. Foi com a amiga de um amigo meu. Parece lenda urbana, mas aconteceu.
A garota estava andando quando foi abordada.
  É um assalto! Passa tudo – disse com a arma em punho.
A garota passou tudo –  bolsa, apostila, celular... – , mas não sem antes começar a chorar.
Não sei se levada pelo desespero ou pela ingenuidade, a garota, entre lágrimas, disse:
  Me devolve pelo menos a apostila.
Nessa hora, quem me contava a história abriu um parêntese e eu aqui o faço também. Ele disse que a apostila do cursinho é cara, coisa de mais de 1000 reais, e que no ano passado a maior causa de boletins de ocorrência naquela região era de roubo de apostila.
  O ladrão rouba para revender  – comenta.
  Roubo é do cursinho, por uma apostila custar tão caro. Quem é que vai investigar esse roubo?
Voltemos a nossa história.
– Me devolve pelo menos a apostila –  disse aos prantos.
Ele olhou para a apostila, para a garota, baixou a vista e devolveu a apostila.
O choro da garota continuou e, não sei se pelas mesmas razões ou por novas, soltou:
– Por favor, me devolve pelo menos os documentos.
Ele, cabeça baixa, olha para a bolsa, pensativo. Abre-a devagar, procura nos bolsos e, tirando os documentos, entrega-os para a garota.
A garota continuou no choro e nos pedidos:
– Me dá pelo menos o dinheiro da passagem.
Ele deu não só o dinheiro da passagem, mas todo o dinheiro que tinha na bolsa e devolveu também a bolsa, o celular, devolveu tudo o que a garota havia entregado.
Em seguida, saiu cabisbaixo.
Não sei se isto é útil, mas termino a participação da garota relatando o que ela disse sobre ele: não tinha cara de drogado.
Quem me contou a história acredita que possa se tratar de alguém precisando demais de dinheiro e, no desespero, tentou recorrer ao assalto.
Eu fiquei aliviado por nada de trágico ter acontecido com a garota. Ser humano, desespero e uma arma não costumam ser uma combinação com final feliz.
Não quero que alguém pense que as ruas estão livres de perigo. A cidade está ficando perigosa. Todo cuidado é pouco. Não quero que alguém faça o que a garota fez se for abordado, ainda mais por alguém armado. De algum modo, o que eu queria mesmo era falar para ele.
Não sei quais foram as suas motivações para fazer o que fez. Não sei o que lhe levou a desfazer o que fez. Espero que a segunda razão seja sempre mais forte que a primeira e que você faça a sua parte, alimentando o que há de bom em você e enfraquecendo o que é mau.
Repare que em nenhum momento me referi a você como “ladrão” ou “assaltante” porque, de fato, pelo que aconteceu (e pelo que não aconteceu!) você não pode ser chamado com tal.
E mais uma última coisa: não se envergonhe pelos seus defeitos; tenha um orgulho saudável por suas qualidades. Erga a cabeça!

João Paulo DiCarvalho
(Crônica publicada na Revista da Cultura online: link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-18/Inesperada_hist%C3%B3ria_inesperada.aspx).

sexta-feira, 20 de março de 2015

QUANDO EU FOR ÀS RUAS PROTESTAR


Parece que no Brasil está virando uma prática anual sair às ruas para fazer reivindicações e protestos. Já estive nas ruas em movimentos paredistas, mas ainda não participei dessa nova modalidade de ocupação maciça das ruas. Nos últimos dias tenho refletido sobre a possibilidade de também sair às ruas, nesse sentido rascunhei algumas regras, como projeto norteador desse meu exercício da cidadania.
Penso que quando for às ruas protestar e fazer reivindicações não usarei camisas com as cores verde e amarelo, pois quero ser levado a sério e não ser confundido com um torcedor da “seleção canarinha”, como era chamada a seleção brasileira de futebol: um discurso que respaldava a ideologia do verdeamarelismo arcaico e alienado.
Quando eu for às ruas protestar, não levarei cartazes com frases e palavras de ordem como “fora”, “fim da corrupção” e afirmações do gênero. Quero deixar claro que possuo um entendimento bem concreto a respeito do que estou reivindicando. Problemas especificamente colocados e propostas claramente aplicáveis. Vi num certo protesto a frase: “menos corrupção e mais saúde”. Pareceu-me uma legitimação da corrupção, só que em escala menor e saúde ofertada em escala maior.
Quando esse dia chegar, não quero ir às ruas como parte de uma massa anônima, convocada, via redes sociais, por grupos ou movimentos cujas bandeiras ideológicas não me pareçam suficientemente claras. Quero saber quem são os articuladores, seus reais objetivos – os explícitos e até os escusos, caso haja; Não quero ignorar também quem são os patrocinadores, pois estou convencido que protestar tem um ônus econômico. Como em política não há bondade, imagino que aquele que paga a conta quer o produto.
Quando eu for às ruas protestar, não irei às praças e aos pontos turísticos mais importantes. Não quero que meu protesto se pareça um evento de marketing da cidade. Também não irei à avenida principal gritar, “panelar” ou quebrar as vitrines de lojas das quais jamais serei cliente ou de instituições públicas. Meu projeto de percurso é na direção da sede do poder executivo, do poder legislativo e provavelmente do judiciário. O propósito será reivindicar uma audiência com os representantes do poder político na qual possa exigir e propor ações que tenham uma incidência positiva nas ações políticas voltadas ao bem comum.
Quando estiver nas ruas, terei muito cuidado com a força física e repressora do Estado e com a força ideológica e manipuladora das mídias, pois a caneta do editor é tão implacável quanto as bombas de efeito moral. Ambas agridem e afetam a visão e invertem as razões dos fatos: transformam cidadãos em bandidos e etc...
Já que, para muitos setores da sociedade, o mais importante em um protesto é a quantidade de pessoas aglomeradas e não os projetos defendidos, penso que quando eu for às ruas protestar, muito provavelmente irei sozinho.

Epitácio Rodrigues da Silva
prof_epitacio@hotmail.com

 (Crônica publicada na Revista da Cultura on line. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-20/QUANDO_EU_FOR_%C3%80S_RUAS_PROTESTAR.aspx  e no Jornal O Povo on line. link:  http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/artigos/2015/03/20/noticiajornaldoleitorartigos,3410374/quando-eu-for-as-ruas-protestar.shtml. )

O HOMEM PARADO


Ele estava parado há algumas horas, não falava, não gesticulava, nada. Quem passava desviava o olhar num soslaio rápido e seguia em frente. Ninguém, nunca tinha visto aquela figura ali, nem cena tão estranha. E o tempo foi passando, passando, passando.
Era tarde do dia quando um transeunte, não sei se mais curioso ou mais corajoso, chegou para o homem e interpelou-o: - Por que está nesta posição há tanto tempo? O homem não respondeu. Perguntou novamente o transeunte: - Por que não fala? não gesticula? E o homem nada respondeu. Após essas, seguiram várias outras perguntas. Mesmo resultado, o transeunte cansado de falar sozinho foi embora. A noite chegou e os casais de namorados começaram a chegar, uns olhavam rapidamente e seguiam, outros demoravam um pouco mais, e nada diziam, alguns casais sentavam-se nos bancos da praça próximo ao homem e entre beijos e afagos uma olhadinha para vê-lo mexer, nada. Uns garotos jogavam futebol numa quadra a alguns metros, a bola chutada por um moleque veio de lá e bateu no homem parado, nada de mexer.
O tempo passou os moleques do futebol foram embora; os casais foram embora, inclusive os mais ousados, da sessão coruja, que adoram as altas horas. E o homem lá. O guarda noturno que estava de serviço naquela noite se aproximou e iniciou um monólogo insistente querendo quebrar aquele silêncio do homem, e nada conseguiu. Chegou a madrugada, o vento gélido fez o guarda procurar um abrigo mais quente e confortável. A barra do sol saiu e com ela os operários que partiam para mais um dia de trabalho. E o homem imponente, estático, silencioso completara seu primeiro ciclo naquela situação.
Mas, o que parecia apenas uma cena curiosa, tornou-se um problema, os garis que limpavam a rua naquela manhã não limparam no lugar que o homem estava, foram reclamados pelo superior que fiscalizava o trabalho e colocaram a culpa no homem ali parado; o supervisor da turma de garis por sua vez foi reclamar com o secretário de limpeza pública do município, este ao prefeito que reclamou com o governador que foi ao presidente que resolveu tomar uma providência. Com uma medida propôs um referendum. O congresso aprovou a ideia e começaram os preparativos para realizá-lo, milhões foram investidos em propaganda, frentes parlamentares foram criadas. Uns a favor do homem parado e outros que eram contra, foi uma verdadeira festa democrática. Comícios, passeatas, carreatas e até gente distribuindo presentes para os eleitores como se eleição fosse. Marcaram a data, tudo ocorreu bem, nesses tempos de avanço tecnológico, urnas eletrônicas, rapidamente, saiu o resultado da apuração. Os que eram a favor da retirada do homem parado daquela rua fizeram a festa. O sim venceu.
Mas como retirar aquele homem dali? Militantes do movimento dos direitos humanos, hippies, ambientalistas e todo o movimento alternativo protestavam contra a decisão. Um homem mais vibrante, de bigodes a Marechal Deodoro, lia em voz alta os princípios constitucionais: artigo V inciso I, todos são iguais perante a lei; ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer uma coisa senão em virtude de lei; etc., etc. Antes que ele terminasse de ler o artigo V da constituição sumira no meio da multidão da guarda nacional. Numa decisão soberana e heroica decidiram convocar as forças armadas para retirar o homem da rua, era um caso de ordem nacional, vários homens armados até os dentes ficaram posicionados numa certa distância. Acreditava-se que o homem poderia reagir, com uma bomba presa ao corpo ou coisa parecida. Um general do exército chegou para interrogar o homem e avisa-lo dos seus direitos e de tudo que tinha acontecido. Nesse instante, viu um papel no bolso do homem, um pequeno bilhete em letras desenhadas por uma caneta segurada pela mão de um pai de família, que há dois anos não arrumava emprego. “Protesto pela falta de emprego”, e continuando “não faço greve de fome, pois fome já tenho tanto, eu e minha família e muitos do meu lugar, Já muito andei, ninguém me notou; resolvi parar aqui nesse calçadão de praça movimentado e daqui só sairei quando arrumarem um emprego pra mim, para que eu possa conseguir pelo menos alimentar a minha família, faço greve de movimentos e de palavras pois a greve de fome tanta gente faz todos os dias compulsoriamente no Brasil e nada acontece”.
Após ler aquelas palavras, o general pensou um instante, fechou os olhos comovido, depois falou pra o homem em voz baixa: sinto muito! Depois pra multidão inteira ouvir: - Recolham o contraventor. E foi aplaudido pela multidão que não sabia o que estava acontecendo naquele momento.
Francinaldo Silva Dias
difadias@hotmail.com
(crônica publicada no Jornal O Povo on line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/01/14/noticiajornaldoleitorcronicas,3377060/o-homem-parado.shtml .  


terça-feira, 17 de março de 2015

A PRIMEIRA LIÇÃO DE HUMANIDADE


Dias atrás recebi um presente de uma amiga muita querida. Era um livro de André Comte-Sponville, A Vida humana. Como acontece com os amigos, ela sabia que gosto muito do trabalho filosófico desse autor, por duas razões muito simples: ele não me deixa esquecer a responsabilidade que temos de cuidar do ser humano. Além disso, tem a capacidade de apresentar suas ideias com uma linguagem acessível, agradável, profunda e com uma beleza literária capaz de elevar o espírito. Diga-se de passagem, um somatório de características raramente encontradas num texto filosófico.
Em tempos de busca esquizofrênica e intempestiva por sucesso, status e riqueza, somos lançados no epicentro de uma crise humanitária: falta tempo para olhar e perceber o outro, quando temos de correr para garantir a nossa sobrevivência. Não estou fazendo mais um daqueles discursos saudosistas do humanismo religioso que precedeu o que temos hoje; não quero fazer apologia de uma proposta de humanismo na qual o homem aparecia apenas como coadjuvante e que fincava seus valores no medo do fogo do inferno ou no desejo de um céu pós-morte. É nessa vida terrena o lugar e tempo de sermos humanos, da melhor maneira que pudermos. Considero a experiência religiosa um importante fator para nossa humanização, quando tem como compromisso a promoção do respeito ao ser humano e quando é honestamente ensinada e vivenciada, mas não vejo muitos sinais dessa experiência religiosa hoje.
Por outro lado, tenho minhas reservas em relação a esse humanismo por decreto, que veio ao mundo depois de uma tentativa de destruição de uma boa parcela da humanidade. Acredito na existência de direitos humanos, mas considero equivocada a crença de que o estabelecimento de uma lei ou Declaração possa me fazer mais humano.
Se queremos realmente uma educação que torne as pessoas mais humanas, devemos começar por um caminho apontado por Comte-Sponville numa das suas falas. Segundo ele, “o grande negócio é sem dúvida amar. Mas quem poderia amar sem ser amado primeiro? Quase sempre, é nos braços de uma mulher que começamos, encostado no seu coração, no seu peito, no fundo de seu sonho e de seu amor...”(p. 41). Por isso, afirma ele, noutro lugar, que “a humanidade é uma invenção das mulheres”(p. 22). Dizer isso é mais que um efeito literário, é uma verdade existencial. É nos braços de uma mulher que experienciamos a riqueza maior do ser humano, e isso quando ainda não somos conhecidos, quando a única certeza que essa mulher tem é que somos seus filhos.
Sou pai de duas crianças, uma menina e um menino, e amo-os muito. Vejo a felicidade deles quando estão comigo, nos meus braços, mas basta a mãe se aproximar para se lançarem nos braços dela, como quem encontra ali uma felicidade maior. Isso não me entristece, porque vi cada dia da gestação, a dinâmica do crescimento daqueles pequenos seres no interior dela. Vi nela as transformações do corpo, a respiração ofegante, o cansaço decorrente do aumento do peso, mas ela sempre se referia a eles como uma chegada feliz. Eu vi, mas somente ela sentiu intensamente.
A primeira lição de segurança, de amor, de paz, de saciedade e de cuidado foram dela que eles receberam. Não há dúvidas de que a mãe, quando assume a maternidade, é também a mãe da humanidade de todo ser humano. A minha única tristeza é que sociedade é incompetente demais para dar continuidade a esse trabalho pedagógico. Não é por decreto, mas por amor que se constrói uma existência verdadeiramente humana e digna.
Epitácio Rodrigues da Silva

segunda-feira, 16 de março de 2015

UMA SAÍDA PERFEITA


O ano era de 2001, o mais querido rubro-negro da terra e acho até que do universo, acabara de se tornar tricampeão carioca em cima do arquirrival CRVG. Por uma questão de princípios vamos colocar apenas a sigla. Fato esse que deu origem a várias piadinhas muito engraçadas e criativas. Mas nossa história não se trata de uma piada, aliás, trata-se de coisa muito séria. O próprio Código Civil traz a seguinte redação em seu artigo 16: “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Verdade é que houve piadas e muitas, tudo bem que o adversário deu margem para que isso acontecesse, nesse mesmo jogo em que o Mengão se sagrara tricampeão, o nosso rival também conseguira ser tri, a diferença é que tri vice campeão não é coisa de se comemorar, talvez na Europa, quem sabe. Pior, tri vice em cima do Flamengo, ou embaixo, como queiram! Mas se o que está ruim pode piorar, o que está pior pode ficar pior ainda, nestes três vice campeonatos o time da colina teve como algoz o grande Rubro Negro, foram três anos consecutivos tendo que aceitar as nossas gozações.
Pois bem! Enquanto no mundo inteiro, milhões comemoravam o título e tripudiavam os bacalhaus. Em um certo bairro de uma importante cidade no interior do grande estado do Ceará, um casal enfrentava sua primeira crise conjugal fruto de uma divergência de opiniões. Explico, Não obstante omita os nomes dos pecadores, direi o pecado: O casal esperava o nascimento de seu primeiro filho, e ainda não haviam decidido que nome dariam ao primogênito. Vários nomes entraram na lista. Ela, de família de tradição católica muito comum no interior do Ceará, dava preferência a nomes de santos: Francisco, José, João foram citados mas excluídos por serem muito comuns. Matheus, Lucas, Marcos, nomes de santos evangelistas estavam na disputa por parte da esposa.
Ele, flamenguista doente. Vasculhava nas escalações das grandes formações do mais querido nomes para seu rebento. Zico, embora gozasse de grande prestígio com nosso amigo, por ser o grande ídolo da nação rubro-negra, fora descartado. Tratava-se de um apelido, e sua senhora não permitiria. Mas Arthur poderia! Pensava ele. Além desse nome, a lista ainda continha nomes como Adílio, Junior, por que não o nome do pai? Pensava como se dissesse a mulher. Sávio também era um forte na disputa mas não tanto como Rondinelli deus da raça rubro-negra.
A discussão já durara algumas semanas e o dia do parto se aproximava. O casal oscilava entre conversas mais contidas e discussões mais exacerbadas. Porém, um fato pôs fim a questão. O pai da esposa de nosso orgulhosos flamenguista, o sogrão, também rubro-negro, falecera em certa tarde vítima de mal súbito. A comoção e a dor da perda mexeu com a mulher que num gesto de gratidão ao pai falecido, resolvera colocar no garoto a nascer o nome do avô. Expedito Domingos Dias Neto, esse seria o nome do novo torcedor do mais querido. A decisão foi acatada pelo esposo que também gostava muito do sogro e não ia contrariar a esposa que sofria.
Era uma tarde de domingo e o time da cruz de malta tinha a vantagem de poder perder por um gol de diferença, já que numa partida de muita sorte no domingo anterior havia vencido por 2x1. Pois bem, O Capetinha Edilson abriu o placar e acendeu as esperanças rubro-negras, mas antes que terminasse a primeira etapa, eles empataram. No intervalo nosso personagem faz suas orações de costume e entre os seus balbucios, parece que ele tem uma carta na manga. Segundo tempo, jogo pegado, enquanto o mais querido ataca acaba se expondo e o adversário explora os contra-ataques. Lá atrás Júlio César se garante e fecha o gol. O futuro papai rói as unhas, bates os joelhos um no outro com ímpeto.
Empurrado pela grande massa, o Mengão chega ao segundo gol com o capetinha Edilson novamente. A festa das arquibancadas parece sacudir a sala de nosso herói que grita num frenesi como se já tivesse ganhado o título. Jogo que segue, angústia que toma conta do nosso amigo. Apreensão na sala, novos balbucios por parte do futuro papai. A essa altura, quarenta do segundo tempo, a angústia toma conta da sala e do nosso camarada. O que ele não faria por mais um gol do Mais querido? De repente entre orações e pragas surge, aos quarenta e três minutos uma falta.
Se por um lado, Petkovic é o batedor, por outro, a distância não é das melhores. Figa nas mãos e nos pés, dá-se um jeito. A precisão com que Petkovic bateu aquela falta foi tamanha e tão decisiva não apenas para a conquista do título de Tricampeão carioca, mas para a própria vida do nosso Flamenguista. Gritos de é tricampeão ecoavam na sala! Na rua, fogos e gritaria! De repente o anúncio de algo silenciador: Meu filho vai se chamar petkovic!!! Ao ouvi-lo, a mulher corre para o quarto. Ele a segue e explica que fez uma promessa para São Judas Tadeu, padroeiro do Flamengo. - Se fizéssemos o terceiro gol eu colocaria no meu filho o nome de quem fizesse o gol. Alegou que não poderia trair o santo. Emendou com a história de que a ideia de meter santo em nome de filhos era da mulher. Ao que a mulher contesta: - Onde é que tem santo ai nesse nome!?
Após alguns minutos de conversa em tom de discussão, a esposa começa a chorar e entre soluços e lágrimas diz: - E o meu pai? Prometi colocar o nome dele na criança!
O esposo lembra sim, diz que até concordou. Quando tudo parecia caminhar para um impasse ele com cara de quem solucionou o problema da fome e das guerras no mundo diz em tom sério, enérgico e decidido: Meu filho se chamará Expeditovik Domingos Dias. E saiu aos gritos: É tricampeão! Tricampeão!!!
Francinaldo Silva Dias
(Crônica publicada no Jornal O Povo on line. Link: 
www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/01/19/noticiajornaldoleitorcronicas3379439/uma-saida-perfeita.shtml

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...