quinta-feira, 16 de abril de 2015

AQUELA VACA



A vaca da minha ex-namorada nunca gostou de mim. Não me assusto se aquele animal estiver me caluniando e espalhando mentiras sobre a minha pessoa. O pior é que eu não faço a menor ideia do que eu fiz contra ela.

É certo que às vezes eu dizia: “Meu amor, mata essa vaca e faz um churrasco!”, mas isso é razão para odiar alguém? Agora percebo que assim como têm pessoas que não sabem perdoar e nos condenam logo, têm animais que fazem o mesmo.

Minha ex-namorada começou a gostar da cultura indiana – o que a novela das oito não faz com uma pessoa? –  e passou a estudar e conhecer melhor a filosofia e a sabedoria hindu. Por conta disso, resolveu criar uma vaca.

Fui contra.

– Meu amor, tudo bem você acreditar que a vaca é um animal sagrado. Mas você precisa mesmo criar uma vaca?

– Sim, essa atitude ajuda a alimentar minha fé. Você é um homem sem fé, por isso não entende – respondia ela toda zen e, com um tom próprio de um discurso cheio de convicção religiosa, iniciava uma longa fala sobre a sacralidade da vaca.

– Mas precisa criar a vaca dentro do apartamento?

– Você não entende? Você não entende nunca, porque é um intolerante. A vaca é a reencarnação da minha mãe. – ela dizia ainda zen.

Então eu fazia uma simples e ingênua pergunta e não tinha Gandhi que continuasse zen:

– Como essa vaca pode ser a reencarnação da sua mãe se a sua mãe ainda não morreu?

– Incrédulo! Apóstata! – ela esbraveja.

O pior é que ela ficava com mais raiva ainda porque eu recebia os insultos com frieza e indiferença, como se não fosse comigo. A verdade é que eu ficava mesmo sem reação, suas palavras não me atingiam por um simples motivo: eu lá sabia o que era apóstata e meus conhecimentos em física eram precários demais para eu realmente ter certeza do que viria a ser incrédulo.

Nosso relacionamento ficou literalmente insustentável quando ela passou a insistir em levar a vaca aos nossos encontros.

– Meu amor, isso é um absurdo. A gente não pode levar a vaca para o cinema.

– Por que não?

– Porque a vaca paga inteira e hoje não é dia de promoção.

– Isso não é problema. A vaca vai pagar meia, está aqui a carteirinha dela.

Abismado, fui verificar a suposta carteira de estudante da vaca.

– Espera aí. É a sua mãe na foto. Essa carteirinha é da sua mãe, da faculdade que ela está fazendo.

– E daí? A vaca não é a reencarnação da minha mãe? O que tem demais ela usar a carteira de mamãe?

– Mas lembra que a gente vai de moto? Três na moto não dá.

Quando eu tinha a moto, era fácil convencê-la de que a vaca não podia ir conosco ao shopping. Porém, depois que eu comprei o carro, a situação ficou irremediável: ou levava a vaca ou terminávamos o namoro.

Não tive outra saída. Terminei o namoro logo depois que recebi a terceira multa por transportar passageiro no banco de trás sem o cinto – a vaca não gostava de usar o cinto e sempre que eu colocava, ela mesma tirava.
Olhando agora para esses acontecimentos, percebo que eu acabei o relacionamento justamente quando estava quase aceitando os preceitos hindus: eu começava a reconhecer traços da mãe de minha ex-namorada na vaca.
 

João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com
(Crônica Publicada na Revista da Cultura on line. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-04-16/AQUELA_VACA.aspx )

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