domingo, 31 de maio de 2015

O MANUAL DA ELEGÂNCIA


Quando planejei a construção da casa, coloquei no projeto um quarto para cada filho, uma suíte para minha esposa e eu, um quarto de hóspede e um quarto para os livros. Mas, com o passar do tempo, eles sorrateiramente começaram a tomar a sala de estar, o nosso quarto, setores da cozinha e do corredor. Então, para salvar o casamento de uma possível crise conjugal ocasionada por esses invasores bagunceiros que se espalham por toda a casa, resolvi adaptar o corredor para ampliar o quarto deles e tentar repatriá-los.
Quando chegou a hora da mudança dos livros, melhor chamar de recondução ao seu lugar, senti-me numa floresta de maneira industrializada. Como ver tantas folhas escritas e não folheá-las? Cada livro que eu pegava era uma ocasião de ser sujeitado à tentação de abrir, ler, recordar a situação na qual o adquiri. Confesso que até tentei não ceder à tentação, mas o vício da leitura falou mais forte. Olhei-os! Num deles encontrei, escrito na contracapa, com minha letra, a frase: “um presente meu para mim mesmo”. Por alguns instantes cheguei a ficar preocupado. Será que isso significa que tenho uma auto-estima elevada? Ou será que a dedicatória é apenas um testemunho a favor de uma vida solitária? Olhei a data e o local. Pois é, tenho essa mania. Sempre que compro um livro, escrevo o local no qual o adquiri e a data. Senti necessidade disso porque, por um tempo, vivi como um cigano, mudando de um lugar para outro. Achei que essas referências me ajudariam a mapear a minha existência no mundo.
- Era um natal longe de casa!
O livro, escrito em espanhol, fez-me recordar daquela livraria na Colômbia e de como os livros eram baratos lá. Lembrei do policial na “aduana” querendo saber por que levava tantos livros na bagagem. A obra Náusea de Sartre levou-me a um sebo em São Paulo, já o Ser e Tempo de Heidegger e o Banquete de Platão trouxeram à memória o Shopping Eldourado, naquela mesma cidade.
Um livro dentre os que folheei me deixou muito intrigado: não me fez lembrar de lugar nenhum. A capa ostentava o título “Manual da elegância” e em letra minúsculas, lia-se: “o guia prático para um homem se vestir bem, com as dicas do maior especialista em moda masculina do Brasil”. Não havia referências do local e data da aquisição. Lembro-me vagamente de tê-lo comprado, mas algumas indagações clamavam por respostas às quais eu não conseguia responder: para que eu compraria um livro que me ensinasse como se dá um nó na gravata, que nunca usarei, e ainda poder escolher se nó simples, duplo, nó pequeno, windson, semi-windson ou nó cruzado? Que me ensine qual o melhor bolso para guardar a carteira? O que é um traje passeio completo ou que é o estilo esporte fino? (essas coisas que eu sempre que recebo um convite para algum evento pergunto a minha esposa e ela me responde com a maior satisfação).
Realmente, por mais que eu tente, não consigo lembrar ao certo onde e porque eu comprei aquele livro, mas o fato de tê-lo encontrado entre os outros me fez perceber uma verdade básica: nem tudo que está nos livros nós queremos, de fato, aprender.

Epitácio Rodrigues da Silva

Crônica publicada no jornal O Povo on line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/05/27/noticiajornaldoleitorcronicas,3444685/o-manual-de-elegancia.shtml.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

A MORTE DO OUTRO: BANAL, INDIFERENTE OU ESPETACULAR


Nem todas as crônicas são humoradas, nem todas as crônicas contam histórias interessantes, nem todas as crônicas servem para desopilar. Às vezes, um texto pequeno sobre uma situação do cotidiano precisa ser algo mais do que isso. Há momentos nos quais o fragmento do cotidiano que se impõe ao cronista para ser eternizado quer também ser uma ocasião para que pensemos a respeito do que estamos fazendo da nossa existência coletiva. Essa é uma crônica que eu nunca quis escrever, mas não consegui silenciar o grito que ecoa interiormente desde o dia em que presenciei o fato que mencionarei. Não vou narrá-lo em suas especificidades, pois esse é um daqueles casos nos quais o adágio bis placet (repetir agrada) não lhe cai bem. Essa crônica é mais uma inquietação filosófica sobre um fato ansiando para ser aprisionada ad aeternum no papel.
Num sábado à tarde, precisei ir ao centro da cidade comprar um objeto. Numa certa altura do caminho, percebi um aglomerado de pessoas: policiais, agentes de trânsito e muitos curiosos. Como a rua estava interditada, parei o carro e me aproximei do local. Entendi que se tratava de um acidente com vítima fatal. Sobre o asfalto havia um corpo senil coberto com uma lona amarela. Na hora, causou-me certo mal-estar ver que os curiosos não demonstravam preocupação em saber quem era a pessoa, se conheciam seus familiares. Na verdade, a cena lembrava mais um espetáculo. As pessoas, com seus celulares em punho, disputavam entre si o melhor ângulo para fotografar o corpo coberto, o sangue espalhado pelo asfalto, para, logo em seguida, postar no facebook e compartilhar com seus conhecidos como quem assistia a um show.
Eu sei que a morte sempre foi a nossa questão não resolvida. Ainda mais que a morte do outro tem esse poder de colocar diante de nós a consciência da nossa finitude: “tudo que está vivo morre!” Por essa razão é que o ser humano, ao longo da história, tentou não só entender, mas até encontrar maneiras de fugir desse fim definitivo. Em vão, criou mitos, religiões, sistemas filosóficos e teorias científicas.
Alguns mitos, com suas narrações etiológicas, manifestam esse nosso anseio de driblar a morte, do qual as famosas peripécias de Sísifo, personagem da mitologia grega, são um exemplo eloquente; já os teólogos criam tanatologias para nos explicar como será a vida após esse fim temporal. Tratados de Escatologia descrevem como será o Paraíso, o juízo final individual e do mundo, o que é o Purgatório, a Salvação e a felicidade eterna ou Contemplatio Dei; os filósofos, desde Sócrates (para quem a filosofar é aprender a morrer), abordam a questão, ora com mais, ora com menos ênfase. Inúmeros textos filosóficos, partindo da consciência da finitude humana, tentam nos convencer de que não é a morte, mas a vida o foco do interesse, pois a nossa responsabilidade é fazer a vida valer a pena, enquanto a morte não está presente. Os homens dedicados às ciências experimentais dedicam-se a pesquisar formas de prolongar a vida: a medicina regenerativa, a robótica.
Mas como o homem efêmero, aquele que se ocupa apenas das suas inquietações mais imediatas, tem lhe dado com esse fenômeno é o que pode ser preocupante: as pessoas nos últimos anos passaram a considerar a morte do outro como um fenômeno banal. Frente à morte de alguém de quem elas não têm nenhuma relação de parentesco, passaram a adotar uma peculiar forma de banalidade, cujas reações oscilam entre a indiferença e o desejo de espetáculo.
O fato curioso é que a morte como espetáculo só se torna manifesta quando se dá de forma violenta ou trágica. Não há respeito, solidariedade ou comoção. O foco dos espectadores recai sobre os elementos cênicos indicadores da tragicidade do fim. Há um interesse especial pelos elementos indicadores do grau de violência ou tragicidade presentes no corpo do cadáver: fotografar, filmar, postar na internet, compartilhar e curtir. Porém, quando a morte não apresenta sinais de tragicidade ou violência, o comportamento mais comum frente ao corpo é a indiferença. Uma morte sem genitivo, sem complexo causal trágico ou violento é considerada “uma morte menor”. Se as pessoas não estão diretamente envolvidas por algum grau de parentesco próximo, elas apenas olham, passam e seguem em frente.
Enquanto contemplava estupefato aquele comportamento, fiquei me perguntando: por que o trágico e o violento fascinam tanto a sociedade hoje? Parece que somos educados à busca do trágico, do violento, do pavoroso, do demoníaco da existência.
Sei que o fenômeno da morte não deixou de causar medo às pessoas, pois basta a certeza da sua iminência na vida de um enfermo, por exemplo, para se evidenciar as manifestações de angústia e desequilíbrios emocionais. Mas o que chama atenção é o fato de que a morte do outro, o não-parente, o não-conhecido, tornou-se uma realidade banal, fugaz e indiferente, quando sua causa parece ser natural. Porém passou a ser celebrado como espetáculo, quando se trata de uma morte violenta ou trágica, ainda que a vítima seja totalmente desconhecida pelos espectadores.
Eu estava ainda mergulhado périplo de constatações e indagações, quando o agente de trânsito veio me avisar que a pista já estava liberada. Segui em frente, no dia seguinte procurei saber mais informações sobre o acidente, no qual uma pessoa teve, de maneira tão brusca, a sua existência interrompida. Pensei na violência do trânsito, nos atos irresponsáveis de muitos condutores que associam bebida alcoólica com direção ao volante. Mas sobretudo me fez pensar que o modo como nos portamos frente à morte do outro é um indicativo de como respondemos à pergunta: o que é o ser humano?

Epitácio Rodrigues da Silva
Prof_epitacio@hotmail.com
(Crônica publicada no jornal O Povo on line. Link:

http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/05/18/noticiajornaldoleitorcronicas,3439757/a-morte-do-outro-banal-indiferente-ou-espetacular.shtml.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A MENINA E A CACIMBINHA



No tempo de antigamente uma menina adoeceu de tuberculose.
Como as pessoas não podiam chegar perto dela, isolaram a menina e a levaram para o outro lado do rio. Todo dia alguém atravessava o rio para lhe deixar o alimento.
Quando tinha sede, a menina cavava de leve na areia próxima do rio até encontrar água, formando uma cacimbinha, e dali bebia água limpa e filtrada.
Nas margens desse rio, tinha muitos Muçambês, planta que cresce até a altura da cintura de um homem adulto e tem flores brancas com detalhes lilás.
Ora, ao beber a água da cacimbinha, a menina também bebia os nutrientes que saiam do Muçambê. De tanto beber da água que tinha a essência dessa planta, a menina acabou se curando da tuberculose.

*

Ouvi essa história de uma amiga, que por sua vez ouviu da sua avó, que viveu lá no sertão dos Inhamuns cearense e só Deus sabe de onde essa história é.
Imediatamente me lembrei dos contos de fadas, histórias recolhidas da tradição oral que foram registradas no papel, sendo modificadas ao longo dos séculos.
Pensei em transformar a história dessa menina em um desses clássicos infantis.  “A Menina e a Cacimbinha (note que já temos um bom título!) seria uma narrativa tenebrosa e com o tom sombrio de Perrault e dos Grimm ou traria a leveza e os encantamentos que o tempo revestiu a essas histórias, tornando-as infantis? Que espírito da floresta ou animal seria o elemento mágico (dispenso a fada!) que daria propriedades curativas à água da cacimbinha? Seria a própria planta personificada que, ouvindo o drama e o lamento da menina, teve compaixão?
Minha imaginação levou, transformou, encantou de várias formas e maneiras essa história, mas minha mão, inábil, como sempre, não conseguiu acompanhar seu voo.
Pensei ainda em transformar a história em uma narrativa mais longa e assim encobrir meus cacoetes literários. Quem sabe um conto ou um romance?
Então me deparo com um problema maior que eu: as exigências.
Parte do público, editores e mercado têm suas exigências e uma forte pressão é feita para que as histórias (literárias, em quadrinhos, dos filmes, das séries, das novelas...) se adaptem aos gostos e tendências, tornado-as comercialmente mais vendável. Um vilão malvado, um interesse romântico, um nome chamativo para o personagem... (a lista é longa e sua extensão é semelhante aos finais felizes dos contos de fada).
Ora, as histórias da tradição oral são vagas justamente porque são narrativas que nascem do imaginário coletivo e as lacunas e espaços em branco que elas trazem ocorrem justamente para se adequar melhor à imaginação de quem as escuta.
Afinal, quem é o antagonista personificado em O Patinho Feio? Qual o romance em Joãozinho e Maria, em O Gato de Botas e no Pequeno Polegar? Qual o nome de Chapeuzinho Vermelho, da Cinderela e da Bela Adormecida? Quais as características físicas – além de ser branca e bonita – da Branca de Neve? Qual o nome do local onde todas essas histórias acontecem?
Volto a pensar em minha longa narrativa (Ah, que título!) e encontro-me empacado nas primeiras linhas. É melhor assim. A tuberculose não matou a menina, graças à essência do Muçambê, mas, ao tentar complementar a sua história com tolas, supérfluas e imprestáveis exigências, com certeza eu mataria a essência, da sua história e a dela também.

***

Menina,
Não sei se sua história aconteceu ou não.
Se aconteceu, fico feliz que você tenha sobrevivido à doença. Se não aconteceu, fico feliz que a sua história tenha sobrevivido por tanto tempo e tenha chegado até mim.
Você, que existe no universo das palavras, acaba de transpor a realidade da oralidade e passa a fazer parte também do mundo da escrita (só peço desculpas pela minha retórica e meu estilo).
Algo que chamou minha atenção foi a sua solidão.
Você sobreviveu e superou a solidão do rio. Você superou a solidão de ser lembrança, de ficar presa na memória e na palavra não dita. Agora que você está no reino da escrita, espero que supere a solidão do branco do papel e das palavras que aguardam serem lidas.

A Paz.

João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@gmail.com
(Crônica publicada na revista da Cultura: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-14/A_MENINA_E_A_CACIMBINHA.aspx).

segunda-feira, 11 de maio de 2015

SE OS CONTOS INFANTIS VIRASSEM NOVELA DAS NOVE



A PRINCESA E O SAPO.

Uma princesa mimada brincava com sua bola perto de um lago. A bola foi parar no meio das águas. Um sapo, que estava perto, disse que a buscaria, mas para isso queria uma recompensa. Presunçosa, a princesa respondeu:
– Meu pai é o rei. Que pode querer uma criatura que nem você que ele não consiga dar?
O sapo pegou a bola e, quando fez o seu pedido, quase que a princesa morre:
– Quero me casar com você.
Não teve outro jeito, pois palavra de rei e de princesa não volta atrás.
Na hora do casamento, quando os noivos finalmente se beijam, acontece algo surpreendente: o sapo transforma-se... numa linda princesa.
– Você é mulher! – disse a princesa mimada. – Mas todos nós pensávamos que você fosse um sapo.
– Eu queria que pensassem assim, por isso eu engrossava a voz e mijava em pé. Mas e aí, tem algum problema o nosso casamento? – pergunta a princesa que era sapo, aliás, perereca.
– Claro que não. Palavra de rei e princesa não volta atrás! – responde a princesa mimada com um sorriso melindroso.
O casamento prossegue e elas... foram vivendo.  Quem no reino não gostasse ou olhasse torto para as duas ou reprovasse a sua união era processado, podendo ir parar na masmorra.

CHAPEUZINHO VERMELHO.

No célebre diálogo, um momento de suspense.
– Vovó, que boca grande a senhora tem.
– Essa boca tão grande é para melhor te devorar, mas eu não posso fazer isso. –responde o Lobo, sua voz hesitando. – Eu preciso te contar toda a verdade.
Pausa dramática. Acaba o episódio. O publico fica chateado, pois é dia de sábado e tem que esperar segunda feira.
Segunda. Repete-se a cena. Momento de tensão.
– Eu não posso te devorar, Chapeuzinho Vermelho, e eu não posso mais fugir da verdade.
Momento de revelação.
– Chapeuzinho, eu sou seu pai!
– Você o que? – fala e lágrimas escorrem dos seus olhos.
– Eu sou seu pai, Chapeuzinho. Eu devorei a sua vó...
– Você o que? – grita histérica.
– Eu devorei a sua vó, mas, calma, vi que ali na cozinha tem um laxante e eu vou... – o Lobo não consegue continuar, pois se assusta com o aspecto sinistro de Chapeuzinho. Ela segura uma faca muito afiada.
– Chapeuzinho, o que foi? Eu disse que sou seu pai.
– Você matou a minha vó.
Chapeuzinho vai avançando para cima do Lobo, que tenta recuar, mas tropeça e cai.
– Chapeuzinho, o que está fazendo? O que você quer? Vingança?
– Que #$%*@ de vingança, o quê? Eu quero é a herança da velha.
Chapeuzinho ergue a faca.
– Chapeuzinho, você não pode fazer isso comigo, eu sou seu pai. – fala chorando desesperado o Lobo.
– Se o Lobo Mau é meu pai, então eu sou a filha MÁ.
Chapeuzinho ataca o Lobo. A câmera dá um close na faca e é possível ver um líquido escarlate como o seu chapéu sujando a lâmina afiada. O close agora é na cara de Chapeuzinho que diz:
– Não vou dividir a herança com ninguém.
A história avança para alguns meses. Chapeuzinho tornou-se muito rica devido à herança que recebeu. Sua mãe “misteriosamente” morreu, após cair da escada. As pessoas da vila estranharam duas coisas: como a mãe de Chapeuzinho caiu da escada se na casa dela não tinha escada? Por que Chapeuzinho foi ao enterro com o chapéu vermelho e não preto? Embora questionassem, ninguém suspeita de nada. Então surge na trama a figura do Caçador, que ouviu toda a conversa entre Chapeuzinho Vermelho e o Lobo e sabe toda a verdade. Ele irá fazer justiça e a todo custo vai chantagear Chapeuzinho, pois tudo o que quer é enriquecer.

BRANCA DE PÓ E OS SETE ANÕES.
Branca de Pó, viciada no que lhe dá o apelido, está escondida numa boca de fumo chefiada por sete anões, todos parentes do Zé Pequeno.
A Rainha Malvada acaba de sair da malhação e dirigi-se ao Espelho Mágico.
– Espelho, espelho meu, existe bumbum mais empinado que o meu? Existe peito mais durinho que o meu? Existe perna mais malhada e sem estrias que a minha?
O Espelho é franco e direto.
– É claro, né?
– Raios! Já sei até quem é! É aquele aspirador albino, a Branca de Pó. Acertei?
– Sim e não.
– ???
– A lista é imensa e está em constante atualização.
– Está dizendo que existem muitas mulheres que nasceram com o corpo mais perfeito que o meu?
– Que nasceram, não! Mas a senhora já ouviu falar em cirurgia plástica? Botox? Silicone? Pois é, hoje se operam milagres com um bisturi.

O PATINHO FEIO

Então, aquele Patinho Feio e rejeitado cresceu e tornou-se um lindo, forte e distinto animal. O Patinho Feio virou... uma Gazela.
– Uma Gazela? Que coisa! Por que eu não virei um cisne? E como eu posso ser um mamífero e ter quatro patas, se eu nasci de um ovo, tinha bico e tinha asas? – reclamou a agora Gazela, vítima desses deslizes e furos do roteiro.
Com o tempo, a Gazelinha Linda foi se acostumando, ganhando confiança, sua pele de cor rosa e púrpura foi se destacando, chamando atenção e arrasando, e ela a-do-rou!

***

Próximos lançamentos dessa coleção:

Joãozinho e Mário; O Gato de Botinhas com Salto; João e o Pé de Cannabis.
João Paulo DiCarvalho

Crônica publicada na Revista da Cultura. Link:http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-11/SE_OS_CONTOS_INFANTIS_VIRASSEM_NOVELA_DAS_NOVE.aspx

segunda-feira, 4 de maio de 2015

AQUELE 28 DE JANEIRO


Hoje, 28 de janeiro, acordei mais cedo. Queria admirar minha amada enquanto ela ainda dormia. Os primeiros raios de sol começam a invadir a nossa casa avisando que o dia já está amanhecendo. Enquanto ela dorme, observo seu rosto delicado, ainda a exibir aquela beleza que primeiro me fascinou, num outro 28 de janeiro, anos atrás. Sempre me pareceu intrigante tê-la conhecido exatamente no dia do seu aniversário, num encontro que tinha tudo para ser causal e, no entanto, há quase uma década acordo, todos os dias, ao seu lado.

Naquele dia eu era apenas um homem procurando a chave de uma porta. Não sabia que era o seu aniversário, na verdade eu, recém chegado àquelas terras, não fazia ideia de que ela existisse. Procurando uma chave, sem o saber, bati à porta de uma nova história que nem imaginava que seria desenhada no futuro. Vê-la vindo em minha direção, causou-me um agradável desconforto. Eu até poderia dizer que foi amor à primeira vista, mas não foi, pois não se pode amar quem não se conhece. O que senti foi fascínio: fiquei fascinado com a sua presença. Com o tempo, a convivência fez do fascínio amizade; a amizade transformou-se em cuidado; o cuidado virou amor; o amor virou projeto e propósito de envelhecer ao seu lado. Quanto tempo, em meus solillóquios, relutei contra esse sentimento: calado, sigiloso, tentando enganar-me de sua existência: era mais cômodo fingir que não existisse.

A força avassaladora do amor é como uma enchente incontrolável, sempre segue seu rumo e impõe o respeito do seu espaço. Parei de lutar contra mim mesmo. Aceitei parar de lutar contra a correnteza. Uma decisão que provocou incompreensão, afastamentos, preconceitos e reprovação. Quando se ama, não se fica preso ao consenso público. Os anos que se seguiram foram particularmente difíceis.

Hoje, acho muito divertido observá-la mudando de configuração em cada situação: às vezes, uma menina travessa, quando brinca com as nossas crianças; às vezes, uma adulta comprometida, responsável, quando está preocupada com o bem-estar e a melhor vida que podemos dar a eles; às vezes uma esposa, mulher e cúmplice no amor...

Hoje, 28 de janeiro, sei que o meu amor não é mais o mesmo dos primeiros anos. Sinto-o mais real, mais concreto, menos idealizado, mais cúmplice, mais sereno. Mais uma vez, no seu aniversário, enquanto ela dorme serenamente, agradeço aos céus pela sua existência, pois ela faz das nossas vidas, minha e dos nossos filhos, um grande presente.

Epitácio Rodrigues da Silva
prof_epitacio@hotmail.com

Crônica publicada na Revista da Cultura. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-04/Aquele_28_de_Janeiro.aspx

LEMBRA, AMADA? – RELÍQUIAS

Lembra, amada, daquela vez que, sob o reflexo da manhã nos teus olhos claros, você disse o quanto me amava, mas se queixou porque eu não gostava de ti? A inexperiência da vida, a preocupação com o vestibular que nós faríamos naquele mesmo ano e o medo, minha fiel companhia, fizeram-me calar e – tal qual aquele verso daquele poema de Neruda – o perfume de uma flor que não subia à terra foi o silêncio de todo o grande e puro amor que eu tinha por ti.
Lembra, amada, daquela noite em que meu coração ficou despedaçado? Eu gostava dela, mas ela gostava dele. Eu, que usava uma camisa azul com listras brancas, calça jeans azul e tênis branco com detalhes azuis, descobri que ela, interesse do meu coração, gostava dele no mesmo dia em que ele estava usando uma camisa branca com listras azuis, calça jeans branca e tênis azul com detalhes brancos. (Ah, os que me taxam como esquisito se soubessem como eu sou vítima até dos detalhes cruéis do acaso ou do destino entenderiam porque sou assim, mas são tantos os que preferem estar no grupo dos que falam sem entender). Você o tinha como filho. Eu o tinha como grande amigo. Eles acabaram namorando. Lembra, amada, como teus olhos tocaram minha tristeza? Como diz a música, “com um toque de pincel”, você tocou meu coração, deu-lhe um propósito, ensinou-lhe a bater novamente por amor a alguém.
Lembra, amada, quando, na fraqueza e no delírio da enfermidade, eu achei ter encontrado a morte? Como aquele filme, a imagem da tua lembrança teve um brilho tão intenso que eu juntava forças para fugir dos meus devaneios febris e escapar da morte. Descobri que eu queria continuar vivendo para ter mais uma oportunidade para te ver e foi assim que eu soube que estava te amando. Lembra, amada, como você soube? Por alguma razão você pegou o ônibus e desceu no mesmo lugar que eu (e eu estava justamente rezando para te encontrar). Lembra, amada, da minha oração para vencer meu companheiro fiel? “Se eu a encontrar hoje e ela estiver vestindo alguma roupa verde, eu me declaro para ela.” Eu, sem acreditar no que estava vendo  – não era comum nos vermos naquele dia da semana e você ainda estava de blusa verde –, ouvia você falar que não sabia o porquê de estar ali. Depois você, sem acreditar, ouvia a confissão da minha oração, da minha alma e do meu coração. Lembra, amada, o que eu achava sobre aquela noite? Que nenhum de nós realmente voltou para a casa. Tudo estava igual ­(o caminho, as ruas, as casas), mas havia algo diferente, que me dizia que o mundo não era o mesmo. Sua resposta para minha pergunta piegas “será o mundo deferente aos olhos de quem é amado”, ainda hoje guardo: “a vida é diferente aos olhos de quem não tem medo!”. Como na canção, meu medo terminava estando ali, ao seu lado.
Lembra, amada, do medo que você sentia? Você tinha medo que eu me apaixonasse por ti. Mas como não me apaixonar? Na faculdade, os gregos preparavam-me um banquete; no céu, a lua e as estrelas segredavam-me coisas que eu só passei a entender por sua causa; nas artes, toda poesia ganhava sentido e explicação com a lembrança do teu rosto. Lembra, amada, que naquele supermercado, entre a seção de frutas e verduras e a dos frios, escutamos pela primeira vez a música “Por Onde Andei”? Eu preferia ter ouvido “Mantra”, mas depois passei a gostar dela também, principalmente porque ela inicia pedindo desculpa (coisa que eu sempre precisei e necessito pedir a você) e pela explicação profética que, em sua repetição, ela traz do hoje.
Lembra, amada, daquele dia que eu olhei pela janela do trabalho e pensei ter te visto? Eu comecei a escrever um livro que nunca terminei, pois só consegui escrever o trecho que pensar ter te visto me inspirou. Lembra, amada, do trecho do livro que você, única leitora, copiou no seu caderno?

“Seus olhos demonstraram surpresa ao me ouvir dizer que esperava por ela. Diante do seu silêncio, expliquei: "Eu sempre espero que o meu dia melhore: se está ruim, quero que ele melhore; se está bom, quero que ele melhore ainda mais! Por isso eu sempre estou esperando por você: encontrá-la faz com que o meu dia melhore!” Então ela sorriu e o Sol nasceu em minha alma. Aproximamos um do outro e fizemos a única coisa que os nossos corações pediam: beijamo-nos e aquele beijo foi eterno, pois o Tempo não ousou prosseguir! Ah, little darling , era tanta coisa que eu queria te falar... É uma pena que você nunca voltou e eu vivo dias que nunca são melhores, sempre a te esperar!"

 Lembra, amada, quando eu estava esgotado, sem força, depois de ter gasto toda a minha energia, mas sem nenhuma esperança de vitória? Eu caminhava no automático e acabei te encontrando – você disse que foi até ali para ver se me encontrava. As luzes estavam se apagando, as portas e as janelas começavam a fechar, as pessoas saiam. Lembra, amada, como olhei para você e caminhei em sua direção? Nos teus braços morri, nos teus braços renasci. Trilhamos juntos o caminho da conquista do que, nos momentos antes de te encontrar, eu achava ser mais uma derrota.
Lembra, amada, naquele dia dos namorados? Você disse que seu coração estava fechado. Lendo o poetinha escrevendo sobre solidão, eu não consegui esquecer você. Lembra, amada, daquela vez que conversamos? Eu li para você o trecho do livro e disse que não era a resposta, mas que queria ser. Lembra, amada, que a minha pergunta poética suscitou em você uma resposta filosófica? Você disse “sim” e eu, que sempre tive dificuldade em entender o pensamento filosófico, só fui entender três dias depois que você tinha aceitado. Lembra, amada, das tuas palavras que velaram o meu sono? Mesmo eu não sabendo, a alegria da tua existência fez-me voltar a ter fé e naquela noite, depois de muito tempo, fiquei de joelhos e rezei. Voltei a dormir em paz.
Lembra, amada, dessas coisas? Ah, a pergunta é retórica e a resposta é irrelevante. Importante é saber e não esquecer que nos teus momentos de tormentos e dor inevitáveis, quando minha atrasada presença finalmente acontecer, se ela for uma pausa no teu pesadelo e meu abraço for um amparo, é porque só estou retribuindo todo o bem que você sempre me fez; que os sonhos que o coração intensamente viveu estão guardados na memória; e que, na longa e sinuosa estrada em que vivo, você é o que me faz vencer aqueles versos do poeta nunca publicado que diz: “Pelo prisma da verdade, seja revelado / um sentido para além da sombra da inutilidade / às ações que no coração tenho como relíquias”.


João Paulo DiCarvalho

jpcmdm@gmail.com
Crônica publicada na revista da Cultura on line.link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-04/LEMBRA_AMADA_%E2%80%93_REL%C3%8DQUIAS.aspx

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...