sexta-feira, 17 de julho de 2015

VIVER O PRAZER E O PRAZER DE VIVER


Estou me convencendo de que numa dada fase da existência todos os projetos pessoais confluem para o mesmo objetivo: “curtir a vida”. Não é fácil precisar o momento, mas parece que ele se impõe na transição da adolescência para a juventude. As razões desse fenômeno também não são muito claras. Às vezes penso que a semelhança de comportamentos nessa etapa da vida é provocada por uma intensa rebeldia à inexorável idade adulta que chega tiranicamente para todos imposta pelos ditames do tempo e dos valores culturais. Não sei por que, mas o discurso do “curtir a vida” está sempre vinculado um comportamento hedonista, no qual a curtição da vida se dá num fluxo de múltiplas experiências de busca de prazer imediato, intenso e efêmero associado a uma recusa de qualquer compromisso responsável: não se quer saber de dever, de prudência e de ponderações prévias sobre os atos. A impressão que tenho é de uma estranha nostalgia da infância perdida, uma espécie de “Síndrome de Peter Pan”, que transmuta o lúdico pueril em hedonismo e a heterônoma própria daquela faixa etária em irresponsabilidade. Mas isso são apenas conjecturas, não sei realmente qual a resposta para esse fenômeno. Porém, a máxima que melhor traduz esse comportamento, desde os tempos antigos, reza: “comamos, bebamos e gozemos, pois depois da morte não há prazer”. Assim, se vai beber, que o faça até perder a lucidez; se vai comer, que seja até o diabetes ou o colesterol; se vai fazer sexo, que seja até o limite da exaustão...
Sempre que vejo alguém reproduzindo esse comportamento, fico com uma vaga impressão de que curtir a vida anda lado a lado com o risco de encurtá-la.

Não quero dizer que seja saudável viver sempre sob o julgo do “dever”. Ninguém merece, por exemplo, viver refém de cobranças laborais, familiares, conjugais e sem reservar um tempo para si mesmo. Considero uma tremenda estultice alguém levantar a bandeira do “meu nome é trabalho” como o seu grande projeto de vida. A realização pessoal não está nos extremos, como já ponderava o velho Aristóteles, ao dizer que a excelência está no meio-termo entre o excesso e a carência. Uma boa comida, uma boa bebida e momentos de intimidade sexual e de adrenalina são indispensáveis para uma vida salutar. O que não dá pra conceber é essa estranha inversão que prega o “prazer de curtir” a vida acima do “prazer de viver”.

Epitácio Rodrigues da Silva
Crônica publicada no Jornal O Povo on line. 
Link: http://www.opovo.com.br/app/opovo/jornaldoleitor/2015/07/15/noticiasjornaljornaldoleitor,3470173/viver-o-prazer-e-o-prazer-de-viver.shtml

terça-feira, 14 de julho de 2015

PSICOLOGIA DE CHEF


  
Não vou fazer terapia por causa disso, mas uma das frustrações que levarei comigo ao túmulo é não saber cozinhar. Fico fascinado com a mistura de condimentos e temperos que dão aos pratos um sabor irresistível, quando preparados por mãos competentes. Acho até que as próprias mãos que os misturam fazem parte da magia do sabor.
Talvez porque na minha infância não pegasse bem ser entendido no assunto, o pouco que aprendi foi por falta de opção. Numa família de nove irmãos, não dá pra fugir dessa possibilidade quando se está entre os seis primeiros e todos homens. O costume era bastante simples: os mais novos, até alcançar a idade para ir trabalhar na roça ficavam em casa ajudando a mãe nas tarefas domesticas. Mas sempre fui melhor lavando pratos e varrendo a casa. Essa falta de confiança na capacidade culinária foi e ainda é o meu algoz.
Sei que nem sempre os mestres da alquimia culinária foram bem quistos e estiveram em alta como agora. Basta lembrar a quantidade de homens e mulheres que foram queimados sob acusação de bruxaria pelo dever de ofício: misturar condimentos. Quantos reis não se sentiram ameaçados pelos cozinheiros, temerosos que eles preparassem um cardápio perigoso e letal como refeição real. De bruxas, feiticeiros, conspiradores e tantas outras calúnias, o que não faltavam eram acusações contra os mestres do bom sabor.
Mas, verdade seja dita, o maior dos malefícios que cometeram contra eles foi relegar ao esquecimento suas ações terapêuticas. Era a boa comida e boa bebida que curavam as pessoas, como somente agora a medicina oficial parece aceitar. Mas esses alquimistas da culinária nos legaram outra riqueza que está no nosso vocabulário cotidiano e não nos damos conta. Talvez quem já passou pela experiência de receber um diagnóstico de um psicólogo dizendo coisas estranhas com termos esquisitos, tenha sentido saudade daquelas frases de cozinheiros: “você é uma pessoas doce”; “ela é muito sem sal”; “aquela criança é uma pimenta malagueta” e “fulana é uma pessoa azeda”. Realmente, a linguagem desses terapeutas profissionais nos parece ainda muito crua e indigesta, quando comparadas às saborosas classificações da nossa personalidade que nos legaram aqueles alquimistas do sabor.

Epitácio Rodrigues da Silva

Crônica publicada no Jornal O Povo on-line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/07/10/noticiajornaldoleitorcronicas,3467903/psicologia-de-chef.shtml

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...