domingo, 29 de maio de 2016

VENDIDO OU COMPRADO, DÁ NO MESMO


Era pra ser apenas mais uma peregrinação pelos jornais online. Queria saber como estava o cenário político, com essa crise gigantesca que se revelou nos últimos tempos. Mas acabei me deparando com uma briga de egos e vaidades de alguns propagandistas da direita ultra-conservadora. Um deles acusava o outro de vendido à esquerda. A razão era simples. Depois que um jornal divulgou uma conversa gravada entre dois envolvidos na crise, um propagandista comentou que o diálogo entre os dois deixava claro que o impeachment da presidenta Dilma foi um golpe. O outro, imediatamente, bradou aos quatro ventos: “vendido!”
Confesso que achei estranho o comentário do primeiro propagandista, mas fiquei preso mesmo foi à explicação do seu acusador: “vendido!”
Só então me dei conta de que em muitos comentários, os defensores de uma política de direita usam essa acusação. Se um jornalista, um artista, um colunista da mídia que está vinculada até a alma com o projeto de direta destoa, já vem o ultimato: “vendido!!!” Comecei a achar tudo muito parecido a uma simbiose de tribunal da inquisição com leilão de opiniões. Com o mesmo martelo condenavam e arrematavam: “vendido pra esquerda!”, “comprado pra esquerda!”.
Se o provérbio que diz “cada um vê o mundo com os olhos que tem a da posição que está” for verdadeiro, é até fácil entender esse comportamento da direita na política brasileira. Se pra direita tudo é uma questão de mercado, as opiniões e pontos-de-vista também são economicamente tutelados. Algo mais ou menos como: “diga o que quer que eu pense e escreva e lhe direi o meu preço!” Considerar essa possibilidade me fez lembrar uma imagem apresentada por Schopenhauer (A Arte de Escrever, p. 2012, 22), para quem alguns pensamentos são como perucas, cuja relação com a cabeça é superficial, exterior e, por isso um corpo estranho para quem a usa. Nada contra quem usa peruca, apenas contra quem tem opinião e pontos-de-vista economicamente tutelados.
Mas não quero ser injusto. Talvez nem todos aqueles que gritam “vendidos” usem de má-fé. Alguns deles podem fazê-lo apenas por falta de argumento mesmo! Mas isso não melhora a situação. Um pensamento comprado não merece credibilidade, porque o comprador é quem determina qual e como deve ser a opinião. Mas, pensando bem, aquele que chama outro de vendido porque não tem nada mais consistente para argumentar é um sujeito de uma cabeça economicamente pobre de conhecimento. Talvez não tenho muito o que vender.
Nos dois casos, é preciso que alguém lhes diga: algumas pessoas constroem seus pontos-de-vista a partir de um esforço honesto de entendimento dos fatos. Só pra deixar claro, não acredito que isso se aplique aos contendores as quais fiz vaga referência acima.
Enfim, não sei se aos propagandistas dessa direita brasileira - irônica, sarcástica e autoritária - falta argumentos ou boa-fé. O que eu sei é que, vendidos ou comprados, dá no mesmo: tudo tem cara de mercadoria ruim!


Epitácio Rodrigues da Silva

sábado, 21 de maio de 2016

POR ENTRE GRADES: ASAS E RAÍZES



Da janela do meu quarto, por entre grades, vejo o Colibri ferido. O pobre pássaro tinha uma das asas quebrada. Asa quebrada, liberdade tolhida. Era uma cena deveras triste, fitar o pequeno pássaro – senhor dos ares – preso ao chão, quando seu destino e sua natureza chamavam-no às alturas. Seu canto parecia um lamento que transpassava o meu ser e contorcia-me as “entranhas”. Aos poucos, aquele canto ou gemido foi dando lugar ao silêncio. Silêncio que parecia resignação. Não havia mais canto, a dor tem, às vezes, um teor ascético: “abstém-te e suporta”. Mas, fazer ascese é sempre morrer um pouco.
Olhando o Colibri, vi apenas o quanto ele era prisioneiro. Se pudesse raciocinar, agora saberia avaliar a riqueza dos momentos nos quais rasgara o vento e sentia as asas da liberdade. Tempos que podia alçar voos ao encontro do néctar da mais nobre Açucena. A flor rubra como o sangue e singela com um anjo.
Pobre Colibri, envolto no manto do silêncio resignado. Se pudesse amar, ficaria triste ao sentir que não ouviria mais o sussurro da Açucena bailando diante dos seus olhos, embalada pelo vento de suas asas. Imaginar aquele som como uma música aos seus ouvidos e aquela cena como um espetáculo aos seus pequenos olhos.
A vida deste Colibri, ferido e aprisionado ao solo como uma árvore pela raiz, agora está por um fio. A ave pequena nascida para as alturas parece saber que sua vida é, em grande parte, dom da Açucena, quando esta lhe oferecia a seiva da vida. Se a nobre flor fosse uma mulher, creio que a seiva não se chamaria néctar, mas amor. E seria o amor de Açucena o único laço admissível a anelar o senhor dos ares.
Pode-se privar o Colibri de voar, como se pode privar o ser humano de amar. Porém, nos dois casos será sempre uma sentença de morte.
Epitácio Rodrigues

In: DUARTE, Elieldo Carvalho & RODRIGUES, Epitácio. As Portas do Tempo nos Muros da Vida. Crato: BSG, 2013, pp. 31-32.

sábado, 14 de maio de 2016

SOBRE O MURO


29 de junho de 1994, meia-noite, sentado sobre um pequeno muro em frente à sua casa, do outro lado da rua, um jovem professor de estatura mediana, rosto de aparência comum, amante da poesia, observava a rua. O sereno da noite cobria a paisagem como uma nuvem branca, que combinada à iluminação pública, dava à rua uma aparência pálida.
Junto à palidez da cor e do sereno, pairava um silêncio quase sepulcral; nada de vozes, nada de passos, nada de pessoas. A rua estava deserta. Apenas um grilo rasgava a noite adormecida com o seu cricilar.
O jovem professor, sob a luz da lua, ensaiou uns versos.
“Olhando a lua clareando a rua...”
Olhou o conjunto: a rua, a lua, a luz, o sereno, a poesia. Tudo era tão triste e tão deserto, sem vida e cinza. Caçou interiormente alguma razão para não estar em sua casa, do outro lado da rua, deitado confortavelmente na sua cama.
- O que faço aqui, em cima do muro, meia-noite? A indagação parecia não atingir toda a eloquência do momento.
- O que faço aqui? Voltou seu olhar para os rascunhos em sua mão.
“Olhando a lua...”
Desde muito cedo, quando ainda estava nos átrios da adolescência, participara de grupos de jovens, de comunidades... E naquele tempo proclamava entusiasta a transformação social, mas paradoxalmente, não compreendia porque era difícil acontecer.
- Se odos querem o bem, a paz, a justiça, por que o mundo não muda? Já naquela época tais perguntas o acompanhavam como um espectro.
Naquela noite, de 29 de junho, porém não pareciam ser estes os grandes questionamentos daquela solitária figura sentada sobre um muro de um metro e vinte.
- O que faço aqui?
Cada vez que este questionamento surgia, sua mente lançava-se nas cortinas de poeira que apagara da consciência seus dias. As lembranças, aos poucos, iam espalhando a poeira que envolvia o arquivo da memória.
Paulatinamente começavam a surgir pessoas, paisagens, presenças. Seu trabalho, tão mal remunerado que dava para entrar no livro dos recordes. Não há muitas glorias no oficio de professor. A sala, o quadro negro descascando-se de tão velho; o giz de cal; o piso vermelho de cerâmica; os alunos, sonolentos, depois de um dia devotado ao labor do campo. Outros alunos, verdade seja dita, não sabiam claramente para que estavam ali.
Após a sua última aula, o professor caminha até  a sua casa- percurso devia durar oito a dez minutos – senta-se no muro em frente a sua residência, convicto de uma única coisa: não sabe porque ainda faz aquilo, naquele lugar, naquela vida. Enquanto estava mergulhado em suas elucubrações, foi tomado por um grande espanto.
- Tudo é efêmero! – disse atônito. Os rascunhos caíram de suas mãos sem que ele se desse conta. Tinha os fixos na rua, mas parecia absorto em si mesmo. A felicidade é uma busca frustrada. Uma máscara a esconder o que, de fato, oprime a todos nós: o cotidiano!
-Tudo é efêmero! Não era a resposta mais otimista. Era tão somente a resposta verdadeira. E a verdade nem sempre sorri para quem a desvela.
Sou um ser efêmero! Seus olhos pareciam querer saltar da face. Fitou mais uma vez a nuvem cinzenta que pairava sobre a rua pálida e deserta.
Eis o cotidiano – pensou – uma nuvem cinzenta e pálida que mascara a existência efêmera. Acenou paulatinamente a cabeça como se quisesse que concordava consigo mesmo. Saltou do muro, apanhou os rascunhos no chão, atravessou a rua, e, depois de abrir cuidadosamente a porta, para não acordar os seus pais, entrou, dirigiu-se ao seu quarto e adormeceu sobre a cama como fazem todas as pessoas efêmeras.
Epitácio Rodrigues

In: DUARTE, Elieldo Carvalho & RODRIGUES, Epitácio. As Portas do Tempo nos Muros da Vida. Crato: BSG, 2013, pp. 21-23.

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...