A vaca da minha ex-namorada nunca
gostou de mim. Não me assusto se aquele animal estiver me caluniando e
espalhando mentiras sobre a minha pessoa. O pior é que eu não faço a menor
ideia do que eu fiz contra ela.
É certo que às vezes eu dizia: “Meu
amor, mata essa vaca e faz um churrasco!”, mas isso é razão para odiar alguém?
Agora percebo que assim como têm pessoas que não sabem perdoar e nos condenam
logo, têm animais que fazem o mesmo.
Minha ex-namorada começou a gostar
da cultura indiana – o que a novela das oito não faz com uma pessoa? – e passou a estudar e conhecer melhor a
filosofia e a sabedoria hindu. Por conta disso, resolveu criar uma vaca.
Fui contra.
– Meu amor, tudo bem você acreditar
que a vaca é um animal sagrado. Mas você precisa mesmo criar uma vaca?
– Sim, essa atitude ajuda a
alimentar minha fé. Você é um homem sem fé, por isso não entende – respondia
ela toda zen e, com um tom próprio de um discurso cheio de convicção religiosa,
iniciava uma longa fala sobre a sacralidade da vaca.
– Mas precisa criar a vaca dentro
do apartamento?
– Você não entende? Você não
entende nunca, porque é um intolerante. A vaca é a reencarnação da minha mãe. –
ela dizia ainda zen.
Então eu fazia uma simples e
ingênua pergunta e não tinha Gandhi que continuasse zen:
– Como essa vaca pode ser a
reencarnação da sua mãe se a sua mãe ainda não morreu?
– Incrédulo! Apóstata! – ela
esbraveja.
O pior é que ela ficava com mais
raiva ainda porque eu recebia os insultos com frieza e indiferença, como se não
fosse comigo. A verdade é que eu ficava mesmo sem reação, suas palavras não me
atingiam por um simples motivo: eu lá sabia o que era apóstata e meus
conhecimentos em física eram precários demais para eu realmente ter certeza do
que viria a ser incrédulo.
Nosso relacionamento ficou
literalmente insustentável quando ela passou a insistir em levar a vaca aos
nossos encontros.
– Meu amor, isso é um absurdo. A
gente não pode levar a vaca para o cinema.
– Por que não?
– Porque a vaca paga inteira e hoje
não é dia de promoção.
– Isso não é problema. A vaca vai
pagar meia, está aqui a carteirinha dela.
Abismado, fui verificar a suposta
carteira de estudante da vaca.
– Espera aí. É a sua mãe na foto.
Essa carteirinha é da sua mãe, da faculdade que ela está fazendo.
– E daí? A vaca não é a
reencarnação da minha mãe? O que tem demais ela usar a carteira de mamãe?
– Mas lembra que a gente vai de
moto? Três na moto não dá.
Quando eu tinha a moto, era fácil
convencê-la de que a vaca não podia ir conosco ao shopping. Porém, depois que
eu comprei o carro, a situação ficou irremediável: ou levava a vaca ou
terminávamos o namoro.
Não tive outra saída. Terminei o
namoro logo depois que recebi a terceira multa por transportar passageiro no
banco de trás sem o cinto – a vaca não gostava de usar o cinto e sempre que eu
colocava, ela mesma tirava.
Olhando
agora para esses acontecimentos, percebo que eu acabei o relacionamento
justamente quando estava quase aceitando os preceitos hindus: eu começava a
reconhecer traços da mãe de minha ex-namorada na vaca.
João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com
(Crônica Publicada na Revista da Cultura on line. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-04-16/AQUELA_VACA.aspx )