terça-feira, 15 de outubro de 2019

Participação em Coletâneas

O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!?, de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mesmo!?, lançada pela Editora Per Se, em 2017, através do Projeto Apparere, que busca incentivar novos autores e autores em geral.

Segundo a Editora, na ocasião, 98 autores participaram, enviando suas obras, num mosaico de gêneros textuais que englobava: crônicas, contos, poemas, haikai, ensaios etc... 
A Editora, através de uma comissão de julgadores, elegeu as 48 melhores obras para compor a coletânea.

Naquele mesmo ano, o autor já tinha participado de uma outra  seleção promovida pela mesma editora para a primeira Coletânea de Crônicas.

Dentre as  145 crônicas e contos enviadas para a seleção, a sua crônica Conheço Você?! figura entre as 40 crônicas selecionadas para compor a Coletânea. 



domingo, 6 de outubro de 2019

SERÁ MESMO COMO EU ACHO?


Assistindo a um programa de TV, desses sensacionalistas que fazem tudo para ter alguma audiência, o apresentador fazendo exploração midiática de um tema considerado polêmico, soltou a famosa e vazia afirmação: “quero deixar claro que eu não tenho preconceitos, mas...” Quando alguém diz essa frase, o que vem depois do “mas” normalmente anula tudo o que disse antes. Dizer eu não tenho preconceito, mas... é como uma forma de se resguardar, antes de vomitar algum tipo de preconceito.
É ingenuidade crer que exista alguém isento de preconceitos. Cada um de nós, reles mortais, antes de justificar que não é preconceituoso ou preconceituosa, devia ao menos se dar ao trabalho de perguntar o que está entendendo por preconceitos; como eles são gestados socialmente e se essa separação entre pessoas preconceituosas e não preconceituosas realmente é confiável.
Voltaire, filósofo francês (que reforçou preconceitos raciais contra os negros africanos inúmeras vezes em suas obras), assim definiu o preconceito: “o preconceito é uma opinião sem julgamento.”[1] Ou seja, o preconceito é toda aquela compreensão de uma parcela da realidade que nós acolhemos, sem nos darmos ao trabalho de fazer uma análise racional mais criteriosa acerca da sua veracidade.
Quando se analisa essa definição, fica evidente que o preconceito, em um primeiro momento, está mais direcionado ao conhecimento: é um conhecimento superficial sobre algo. Portanto, no campo dos valores, não seria, ainda, nem bom e nem ruim. Outra conclusão é que, dessa perspectiva, todos nós somos portadores e até promotores de preconceitos, na medida em que carregamos visões preconcebidas e superficiais da realidade que nos cerca. Isso porque não temos condições, humanamente falando, de examinar criteriosamente todos os conhecimentos, informações e discursos com os quais entramos em contato e assimilamos cotidianamente. Sem falar que, em algumas situações, somos até estimulados a acatar como certos e não pôr em dúvida certos discursos, como o caso de alguns credos religiosos ou de supostos “valores” sociais.
Nossa visão de mundo está repleta de preconceitos históricos, geográficos, políticos, morais, estéticos, econômicos, epistemológicos, só para citar alguns, porque as relações humanas são construídas não somente a partir de valores positivos, mas também de relações de conflitos, disputas e interesses antagônicos, que afetam a maneira como enxergamos e compreendemos os outros. A partir daí, cria-se hierarquia de valores de várias ordens, que classificam e rotulam os outros, distorcendo nossa visão a respeito de pessoas e grupos humanos. Essa é uma das razões para o preconceito ser considerado uma coisa ruim.
Outra razão está no fato de essa visão de mundo ou opinião ser considerada pelo individuo como uma certeza, gerando uma postura dogmática, ou seja, que não aceita questionar ou avaliar mais criteriosamente a maneira de entender as coisas.
Se é inventável que carreguemos algum tipo de preconceito herdados da nossa cultura e que o reproduzamos, isso não é razão suficiente para, em casos de visões de mundo que respaldem situação de conflitos e ou de violência física ou simbólica contra pessoas e grupos, não coloquemos sob o tribunal da razão os fundamentos sobre os quais se edificam nosso entendimento a respeito do assunto. Penso que é praticamente impossível a gente não carregar algum tipo de preconceito, mas podemos quebrar os grilhões que nos prendem a muitos deles. Um bom começo é pararmos de justificá-los com essa medíocre desculpa do eu não tenho preconceito, mas... e começarmos a perguntar em cada situação: será mesmo como eu acho?! E partir em busca de respostas melhor fundamentadas racional e eticamente.

Epitácio Rodrigues, 06, 10,2019.



[1] Dicionário filosófico. Martin Claret, 2003, p. 428.

domingo, 29 de setembro de 2019

BRINCADEIRA DE GENTE GRANDE É COISA SÉRIA



Aos olhos de muitos estrangeiros, nós brasileiros somos acolhedores, bem-humorados e muito dados a brincadeiras. A nossa alegria, apesar das dificuldades da vida, se manifesta não apenas no sorriso natural que exibimos a toda instante, mas na maneira como nos portarmos e falamos. Parece que nós aprendemos muito cedo a sorrir de nós mesmos e das situações da vida. Mas, nesse quadro no qual somos figuras pintadas com as cores mais vivas e alegres, na maioria das vezes deixa-se à sombra fundos sombrios. Gostamos tanto dessa imagem, que somente em algumas situações pontuais percebemos as falhas nesse sistema icônico. Nessas ocasiões, surge uma desconfiança que, se levada a sério, pode trazer à tona uma importante questão: será que isso que nos afanamos como uma qualidade identitária, não esconde também um lado tenebroso?
Comecei a desconfiar mais seriamente dessa imagem que temos de nós mesmos, depois de um relato que ouvi recentemente. Uma amiga me contou que numa reunião de umas quarenta pessoas, uma delas, querendo ser engraçada, fez uma piada jocosa referindo-se a alguém presente. Mas, o que ela via como uma piada, alguns dos presentes consideram um ato de racismo, outros entenderam como injúria racial. Teve também quem não visse nada de mais na fala do colega. A pessoa referida na suposta piada ficou tão constrangida que abandonou a sala aos prantos. O autor da piada tentava se explicar frente aos outros colegas como único argumento: a alegação de que tinha sido apenas uma brincadeira. Acreditava que isso era razão suficiente para se eximir das implicações legais da sua fala. Não convenceu! No dia seguinte, a suposta piada virou caso de polícia e de justiça.
O relato me fez perceber uma coisa estranha entre nós. Para muita gente, a graça da coisa é fazer “graça” com os outros e usar a desculpa da brincadeira como justificativa. A lógica da coisa é mais ou menos assim. Inverte-se os papéis, de forma que o problema não estaria na piada, mas na falta de senso de humor daquele com o qual se faz a piada, que não sabe brincar. Como se quisesse dizer aos que não têm senso de humor: “não confundam as coisas, o alegre povo brasileiro não cultiva práticas machistas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas e nem de preconceito de classe. O alegre povo brasileiro é assim mesmo: gosta de fazer graça de tudo! ” Nessa lógica, a frase “não, foi só uma brincadeira! ” funciona como um salvo indulto para as situações de humilhação, constrangimento, e até de atos de violência. Aos que repudiam essas práticas, recai o veredicto de falta de senso de humor.
Nesse entendimento, quando alguém diz que é brincadeira, espera que o outro aceite a ofensa como não-ofensa, porque não estava falando sério e sua fala não era “de verdade”. Não havia intenção de humilhar, constranger ou até mesmo de agredir a outra pessoa. Se, por acaso, alguém fica ofendido, esse resultado deve entrar na cota de dano colateral não-intencional. Mas, a coisa não é bem assim. Parece que o alegre povo brasileiro precisa aprender que, por mais paradoxal que isso possa parecer, brincadeira é também coisa séria! Primeiro, porque quando se diz que uma fala, um gesto ou uma ação é brincadeira, deve-se perguntar, por exemplo: “na perspectiva de quem? ” Uma fala que alguém acha muito engraçada, pode não ser para aquele de quem se fala. Ao proponente de uma brincadeira saudável, cabe a prerrogativa de ser capaz de empatia, de se perguntar como outro se sentirá com isso. Não pode ser saudável uma piada que, uma vez proferida, quem disse sorriu, mas aquele de quem foi dito chorou ou sofreu.
É verdade que algumas pessoas, em nome da liberdade de expressão e de outros valores da democracia contestam esse entendimento, reclamando que hoje não se pode mais dizer nada porque tudo é ofensa, é racismo, é machismo... “Onde está a liberdade?! - questionam. Eu até entendo que não se deva pilhar por tudo o que se diz, mas a liberdade de expressão não é um conceito absoluto. É também uma exigência das sociedades democráticas, guardiãs das liberdades individuais, a responsabilidade pelos seus atos e o respeito aos outros. Você tem a liberdade de falar e agir, mas também a responsabilidade de assumir as consequências do que diz e faz.
Por fim, a capacidade de avaliar as possíveis consequências de uma situação, de uma ação e de uma afirmação é um sinal de maturidade. É assim que gente grande brinca e nisso reside a graça da coisa toda.

Epitácio Rodrigues

domingo, 22 de setembro de 2019

Sentido virtual da existência



Por muito tempo convivemos com uma separação entre pessoas famosas e pessoas comuns: nós, do lado de cá, elas do lado de lá. Isso porque alcançar um reconhecimento público em escala nacional era uma jornada muito difícil. Porém, parece que a internet fez cair por terra os muros que separavam as pessoas famosas das comuns.
Com o suposto fim das barreiras que enquartelavam o monopólio da fama, as pessoas “comuns” foram tomadas por uma sensação de que é possível um “faça sua fama você mesmo”. Foi-se o tempo em que ter o nome na capa de um livro era uma coisa muito difícil. Hoje, qualquer pessoa que tenha um nível mediano de escolaridade pode tornar-se um escritor e publicar um livro numa dessas editoras de autopublicação e ainda ter sua obra exposta numa loja virtual ao lado dos escritores já consagrados pelo público leitor. Com uma conta no youtube, ela pode ter seu próprio programa, seu reality show; com perfis nas redes sociais pode postar e compartilhar o que come, bebe, veste, pensa ou não pensa.
Mas, não para por aí. Dentre as mudanças advindas com a internet, está uma nova maneira de as pessoas se relacionarem com o próprio sentido da existência. De um certo modo, existir tornou-se sinônimo de “existir para o mundo”. Não se trata de um existir para o mundo somaticamente, em carne e osso, mas de uma forma de existência virtual e performática, na qual se condensam numa mesma imagem um conceito de profissão, fama, poder (visto como influência sobre outras pessoas), renda e reconhecimento social.
Os parâmetros de realização – entenda-se sucesso – é estabelecido pelo número de visualizações, curtidas e compartilhamentos de posts; pelo número de seguidores, like e deslike em canais e perfis de redes sociais. O aumento desses índices passou a ser a meta das interações nos ambientes virtuais e também o termômetro da famosidade.
Esse novo modo de existência cujo sentido se assenta na busca de visibilidade virtual é tão intenso que possui uma lexicografia própria: like, deslike, visualizações, cutucadas, seguidores, joinha, canal digital, digital influência, youtuber, perfil, legião de seguidores e congeneres. Até mesmo algumas expressões como amigo ganharam configurações conceituais diferentes: ser amigo, num ambiente virtual, é seguir, comentar e compartilhar postagens de alguém.
Não preciso dizer que nem todo mundo concorda com essas inovações na maneira de se viver. Aliás, algumas pessoas condenam, enfaticamente, tudo isso por considera-la uma forma de alienação, uma perda de tempo, ocupação de desocupados que não têm coragem de trabalhar de verdade. Penso que essa recente configuração da nossa existência é, em muitos aspectos, um caminho sem volta. Está aí. Não pode ser negada, nem abandonada sumariamente. O ambiente virtual é um novo espaço de interação humana e que altera profundamente a nossa forma de compreender a própria vida. Não dá para ignorar isso! O que precisamos fazer? Aprender a vivenciar essa experiência da forma mais saudável que pudermos, buscando entender os riscos aos quais estamos sujeitos nesse redesenho do nosso ser-no-mundo.
Penso que o nosso papel não é negar o óbvio, mas sugerir aos que se aventuram nessa empreitada do “faça você mesmo sua fama” que tirem o melhor proveito das lições dos famosos e famosas das antigas, sobretudo aquela que ensina: “existe uma diferença entre pessoa e personagem, entre ser e parecer”. Assim, a busca por visibilidade e visualizações como termômetros de fama não pode ser entendida como um sentido da existência porque o virtual é imagem e somos muito mais do que isso. Uma imagem nunca vai dar conta de tudo o que somos e do sentido que buscamos para a nossa existência.

Epitácio Rodrigues, 22/09/2019

domingo, 15 de setembro de 2019

Não era quem parecia, não parecia quem era



O semáforo pode, às vezes, representar um momento de pausa, não só no caminho, mas no automatismo da própria vida: uma parada, uma respirada profunda, uma sensação de desaceleração, na pressa do dia-a-dia. Que o diga quem tem que trabalhar de manhã, muito cedo, e já salta da cama acelerado.
Não estou negando o fato de o semáforo ter sido inventado para organizar o trânsito, possibilitar um tráfego para motoristas, motoqueiros, ciclistas e pedestres. Quero apenas dar o devido valor àqueles brevíssimos instantes de espera, quando, ao invés de fixarmos o olhar para uma luz vermelha, experimentamos a vida que corre à nossa volta, enquanto estamos parados.
Bom, hoje pela manhã, o semáforo estava lá, no meu caminho, com a sua luz vermelha. Parei! Se, como disse, parar no semáforo poder ser uma ocasião de a gente ver as coisas que estão à volta, o que eu vi pareceu-me bastante incomum: um homem atravessando a faixa de pedestre, mas não um homem qualquer. Era alguém que parecia ser, mas não era.
Explico: os cabelos, os traços fisionômicos, a compleição física e até a altura: tudo nele, fisicamente, era muito semelhante ao cantor Raul Seixas. Mas tenho certeza de que não era ele, pois Raul Seixas já partiu desta faz alguns anos.
 “É mais um fã!” - pensei, dando uma explicação a mim mesmo naquele momento. Porém, aquilo me tirou do lugar-comum; e quando dei por mim já estava mergulhado numa questão filosófica: inquietava-me o problema do ser e do parecer.
O sinal abriu. Segui o meu caminho e seguiu-me também uma inquietação, que logo se transmutou em uma pergunta:
- “O que leva alguém a querer ser quem não é e negar o ser que é?”
A pergunta fez lembrar-me de um velho professor de ontologia, nos tempos de faculdade, que dizia, vez por outra: “o primeiro sinal para uma coisa não ser é parecer, pois o que é, não parece, é!” Enquanto rumava para o trabalho, a questão se metamorfoseava em uma teia de novas formulações:
- “Por que queremos ser quem não somos? E o que é pior: fazemos isso para sermos quem jamais poderemos ser?”
Sabia que aquele homem não era o cantor famoso e, por mais que se esforçasse, jamais chegaria a sê-lo. E ainda tinha o agravante de, no esforço de ser quem não era, acabar negando para si mesmo quem ele, de fato, é.
- “Seria uma frustração ontológica: querer mais ser outro alguém do que querer ser a gente mesmo?”
Se for assim, o que vi foi alguém perdido na sua própria existência, pois jamais deixará de ser quem é, e jamais será quem deseja ser. A identidade é unívoca. E a possibilidade de ser outro está vedada para nós. A gente até pode mudar o mesmo, mas será apenas uma mudança que permanecerá circunscrita no âmbito do mesmo.
Assim, de tudo que vi, a única certeza que tenho é que não sei quem eu vi, pois não era quem parecia, e não se parecia com quem de fato era.
Mas, como disse, e volto a repetir, parar no semáforo é também uma ocasião de se ver as coisas que estão à volta.
O semáforo abriu e com ele veio a pressa do cotidiano.  E com ela tudo é mais simples: Abri mão desse infindável labirinto de perguntas e achei bastante sensato me conformar com a ideia de que o que vi foi apenas mais um fã. Agora, repleto da paz da pressa, já estava torcendo para encontrar o próximo semáforo com aquela luzinha verde acesa, quando uma vozinha irritante sussurrou do mais recôndito do meu juízo:
- “Mas, o que é mesmo um fã!”
Epitácio Rodrigues


sexta-feira, 14 de abril de 2017

ENSAIO SOBRE A OPINIÃO


Epitácio Rodrigues da Silva

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ideia na mesma ocasião, e nada além disso!”
SCHOPENHAUER, Artur.
A Arte de escrever. Porto Alegre: L&PM: 2012p.134

É muito comum nas discussões entre amigos, numa intervenção de aluno em sala de aula, num comentário em uma rede social nos depararmos com expressões como: “essa é minha opinião”, ou “na opinião...” ou “para mim...”, ou “cada um tem a sua opinião e esta é a opinião dele...”.
O que há de comum nestas expressões, na maioria das vezes, é uma contradição velada, na medida em que se postula a liberdade de expressar a opinião ou crença de um individuo, como um direito inalienável, mas, paradoxalmente, essa opinião é apresentada como um absoluto pelo seu expositor. Quando diz: “essa é minha opinião”, pretende-se com essa fala fechar a discussão e firmar o pé ali, irredutível. Assim, a suposta liberdade de opinar, de expor sua opinião vem acompanhada de uma postura dogmática que a postula como verdade incontestável, sem levar o sujeito que a expõe à responsabilidade intelectual de aprofundar as razões e os fundamentos do seu próprio pensar.
Aí residem dois graves problemas: o primeiro é o de saber distinguir entre uma opinião e outras tipologias ou graus de conhecimentos; o segundo, atrelado a esse, é que a opinião, ainda que tenha seu valor, não é justificativa suficiente, quando o que está em jogo tem implicações para toda a sociedade ou uma parcela considerável dela. Noutras palavras, não pode ser colocado no mesmo nível de implicações coletivas para um jovem o fato de ele ser perguntado pela sua namorada se o vestido que ela está usando é bonito, e se as pessoas devem ser colocadas em lugares mais isolados do contato com os clientes numa empresa porque são consideradas feias para o padrão estético daquele grupo. As duas situações versam sobre a temática da estética, mas a resposta da primeira exige bem menos reflexão e conhecimento do que a segunda.
Pode-se se dizer que vivemos uma grande ágora, na qual cada pessoa pode manifestar seus pontos de vista sobre qualquer assunto. As pessoas têm, mediante as redes sociais, a possibilidade de “comentar” sobre qualquer tema que esteja em alta na sociedade. Mas há uma situação ambígua e até certo ponto problemática com relação a isso. Uma vez que cada um pode escrever e publicar o que pensa ou o que acha, tornou-se cada vez mais séria e urgente a necessidade de considerar o que se pensa e como se constrói entendimentos a respeito da realidade do mundo e da vida nas suas mais complexas e multifacetas configurações.

Achamos muito, mas sabemos pouco. Isso ocorre, em grande parte, porque não nos damos ao trabalho de ‘checar melhor’, pôr em crise, problematizar o que pensamos. Temos de pôr em ‘dúvida’ (Descartes) ou tentar ‘falsificar’ (Popper) nossas certezas. Passando por esse crisol, por esse instrumento de depuração, nossos pensamentos podem apresentar-se mais seguros (LORIERI, 2002, p 38).

Nas redes sociais, comentar é manifestar seu ponto de vista sobre um assunto, normalmente, com poucas palavras e muito frequentemente polarizando com outro comentador.
E é aqui que a questão da opinião ganha mais feição de preocupação. Porque o critério mais considerado é a quantidade de endosso ou reprovação que o texto recebe, a partir da temática ou ótica da qual foi apresentado.
Muito apressadamente se assume um posicionamento e, mesmo quando há posição melhor fundamentada, não há uma disposição em rever seus posicionamentos para não passar pelo constrangimento diante de outros expectadores virtuais.
O perigo dessa questão pode está na pressa de se posicionar, sem considerar a complexidade de certas temáticas. Outra é que a base para um comentário é quase sempre de caráter emocional, emotivo ou fundamentalista. Uma pessoa não consegue perceber que seu discurso incorre em várias contradições, porque sua base não é argumentativa, mas apaixonada ou fiducial ou emotiva, não raro preconceituosa.
Talvez, diante dessa fala alguém possa argumentar que, num espaço democrático, negar aos indivíduos o uso público da palavra sob o pretexto de não serem especialistas no assunto é uma postura antidemocrática. Isso seria uma ditadura do especialista, como o senhor da verdade. Mas, quero reforçar que não se trata disso. O que chamo atenção é para a necessidade de uma postura mais responsável na hora de se emitir uma opinião a respeito de questões, cuja complexidade e a abrangência tenham consequências diretas na forma de organização da coletividade.
Penso, por exemplo, em posicionamento que beiram ao fascismo, à apologia de extermínio de pessoas, na maioria das vezes tendo como pano de fundo questões de gênero, raça, condição socioeconômica e congêneres. Há um crescimento vertiginoso de uma prática nociva de se tecer comentários nos quais, frequentemente, uma pessoa é julgada e condenada, antes mesmo de ser submetida a um julgamento pelos órgãos competentes.
Não é por puro pedantismo que a Filosofia mantém viva a discussão sobre a necessidade de fundamentação do discurso. Se hoje um comentário tem um alcance praticamente global, ele tem também uma implicação ética na mesma extensão. O que se diz pode, dependendo da temática sobre a qual se manifesta, ter implicações diretas na formação de uma compreensão equivocada de um assunto. Assim, torna-se pertinente a indagação: em que se fundamenta esse discurso sobre valores éticos e estéticos, política, ser humano, ciência etc? Relacionado a isso, ainda que não se tenha dado a devida importância, faz-se necessário retomar a antiga discussão a respeito da relação entre opinião e conhecimento fundamentado, levantada pela Filosofia, ainda no seu processo de consolidação de si.
Em que sentido a Filosofia pode contribuir para melhorar esse cenário? Então qual é o ganho do estudo da filosofia, nesse nível mais básico para uma relação melhor com a opinião e com o conhecimento?
A filosofia tem uma obsessão pela verdade. Isso não quer dizer que o filósofo o seja detentor da verdade. Exatamente por não se sentir o dono da verdade, ele se torna um vigilante da verdade, na obscuridade dos discursos e das falas. Não é uma negação das opiniões em si, mas a superação de um tipo de discurso cuja base é o “achismo ingênuo” e “dogmático”.
A finalidade primeira da Filosofia não é negar, mas buscar “provas” e “justificações racionais” para nossas “crenças e opiniões, nossas ideias e valores, sentimentos e comportamentos” (Chaui). Digo mais. Não somente provas e justificações racionais, mas também análise crítica dessas crenças, opiniões, sentimentos e valores e sentimentos e comportamentos. Isso porque é possível justificar racionalmente uma coisa, mas não analisar criticamente seus fundamentos, o que chamamos de ideologia.
Desenvolver o hábito de comparar discursos antagônicos, para ver as semelhanças e diferenças, as incongruências, os interesses. Estabelecer relações de grandeza. Saber situar um discurso dentro do seu conjunto. Suas interseções e seu fundamento. Lorieri lembra que “temos de estimular crianças e jovens a estabelecer os mais variados tipos de relações entre coisas e coisas, fatos e fatos, situações e situações, e, sobretudo a estabelecer relações entre ideias, relatando-as de outro modo.” Ainda segundo o autor, os tipos de relações são inúmeros e das mais variadas formas. Ele cita alguns possíveis:

Relações de grau (maior e menor, por exemplo); relações de igualdade, de semelhança, de diferença; relações parte/todo; relações de causa/efeito; relações espaciais; relações temporais; relações de gênero; relações de número; relações sociais; relações semânticas; relações sintáticas; relações de transitividade; relações de reciprocidade; etc. (LARIERI, 2002, p. 116)

A opinião, como defende a tradição filosófica, é um saber que se situa entre a ignorância, ou desconhecimento completo e a ciência e a filosofia, enquanto saberes fundamentados a partir de uma base metódica rigorosa. O valor da opinião está no trato das questões mais cotidianas e imediatas, afinal, nenhum ser humano tem a obrigação de conhecer tudo em profundidade.
Todavia, cumpre fazer a devida distinção entre opinião e um saber mais fundamentado. Nesse sentido, as bases sobre as quais ambos os saberes são construídos faz muita diferença. Em outras palavras, embora eu tenha livre uso da palavra para expressar meus pontos de vista, por questões de honestidade intelectual e por respeito às questões que estão em jogo, quando dizem respeito à organização e interesses da coletividade, o bom senso advoga a favor da necessidade de buscar aprofundar meu entendimento a cerca da temática, procurando bases mais objetivas e melhor fundamentadas, levando em conta a complexidade do assunto e as diferentes abordagens a seu respeito.
Isso não significa que toda a opinião esteja em descordo com a verdade dos fatos, a questão não é propriamente esta, mas a superficialidade gnosiológica sobre a qual ela se sustenta e a pretensão de impô-la como verdade incontestável. Nas palavras do filósofo: “essas pessoas, diremos nós, opinam sobre tudo, mas não sabem nada a respeito das coisas sobre as quais opinam” (Platão. A Republica, 1997, p. 189)
A questão a respeito da relação entre a Filosofia e opinião não diz respeito ao problema da verdade ou falsidade de uma opinião, visto que uma opinião, pode ser verdadeira, ainda que seu defensor nãos esteja em condições de justifica-la adequadamente. Pensar isso seria o mesmo que defender que toda a opinião, pelo fato de ser uma opinião, não é verdadeira. Essa relação não é nem lógica, nem ontologicamente necessária.
O perigo da opinião reside no fato de ser carente de uma fundamentação mais aprofundada. Vale salientar que não é somente pela filosofia que pode se fundamentar uma opinião. Os fatos históricos, os embasamentos sociológicos, científicos, jurídicos e psicológicos podem ser elementos que ampliem a compreensão sobre uma dada temática e que, portanto, possibilita uma profundidade melhor e mais consistente ao seu expositor. A filosofia aqui aparece como uma forma de saber que por primeiro julgou a mera opinião como uma saber insuficiente para decidir sobre questões cuja complexidade e as consequências dizem respeito a um número considerável de pessoas ou grupos.
Não significa, portanto, que devemos abolir ou nos negarmos a emitir nossa opinião sobre qualquer coisa, pelo contrário a opinião é uma condição da nossa subjetividade, um juízo de valor provisório e imediato que formamos e expressamos sobre um aspecto da realidade. E não há um individuo que não faça uso dessa prática. O que se chamou atenção aqui foi para o fato de que, hoje vivemos numa teia de comunicação que nos coloca frente a possibilidade de manifestar o nosso parecer sobre qualquer assunto de forma pública, assim, há que se ter um entendimento de que as temáticas possuem valor e consequências diferentes. E que nos casos em que as implicações sociais e coletivas são mais complexas, cumpre sempre o cuidado de aprofundar os conhecimentos a respeito do assunto para se ter um mínimo de razoabilidade possível na hora de emitir um juízo de valor e sempre ciente de que sua compreensão será sempre parcial, outros elucidarão elementos que podem tornar evidentes a fragilidade da sua própria compreensão a respeito daquela temática.

Referência bibliográfica
CHAUI, Marilena. Boas Vindas à Filosofia. São Paulo: wmfMartins Fontes, 2011.
__________, Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles, Vol. 1. ed. rev. e ampl.  São Paulo: Companhia das letras: 2002.
GOBRY, Ivan. Vocabulário grego da filosofia. São Paulo: wmfMartins Fontes, 2007.
LORIERI, Marcos Antonio. Filosofia: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.

PLATÃO. A República. São Paulo: Abril Cultural, 1996. (Col. Pensadores)

quinta-feira, 9 de março de 2017

Em pleno século vinte e um...


A única coisa que o tempo garante é a velhice. O resto é tudo por nossa conta e risco. Não adianta deixar sujeira na casa, pensando que o tempo limpa. Tente pagar as suas contas com o tempo e verá que quanto mais o tempo passa pior fica. Mas as pessoas continuam nessa crença ingênua de que o tempo cura tudo. O tempo não cura nada, porque a função do tempo é envelhecer. E envelhecer e curar são coisas bastante diferentes.

É bem verdade que algumas coisas envelhecidas ficam melhores, vamos pensar no vinho, por exemplo, mas isso não é mérito do tempo; outras coisas ficam piores: uma chateação que vira raiva, que depois vira ódio, que evolui pra vingança, que leva à morte. Mas a própria morte não resolve tudo. Se as pessoas matavam umas às outras no inicio do século, ainda continuam fazendo; se havia roubo, doenças, pobrezas, injustiças ainda continuam acontecendo, talvez com variações nos tipos e formatos, mas o tempo não resolveu isso também. As pessoas criaram novas formas, resignificaram as antigas e por aí vai.

É besteira achar que as pessoas evoluem com o tempo, no máximo ficam mais velhas e isso é só um sinal de que caminham para um fim muito pior: a morte.


Epitácio Rodrigues da Silva, 23, 02, 2017. Publicado na Webartigos

Participação em Coletâneas

É isso mesmo O ensaio Basta só opinar sobre tudo, é isso mesmo!? , de Epitácio Rodrigues foi aprovado para compor a Coletânea É isso mes...