O semáforo pode, às vezes, representar um momento de pausa, não só
no caminho, mas no automatismo da própria vida: uma parada, uma respirada
profunda, uma sensação de desaceleração, na pressa do dia-a-dia. Que o diga
quem tem que trabalhar de manhã, muito cedo, e já salta da cama acelerado.
Não estou negando o fato de o semáforo ter sido inventado para
organizar o trânsito, possibilitar um tráfego para motoristas, motoqueiros,
ciclistas e pedestres. Quero apenas dar o devido valor àqueles brevíssimos
instantes de espera, quando, ao invés de fixarmos o olhar para uma luz vermelha,
experimentamos a vida que corre à nossa volta, enquanto estamos parados.
Bom, hoje pela manhã, o semáforo estava lá, no meu caminho, com a
sua luz vermelha. Parei! Se, como disse, parar no semáforo poder ser uma
ocasião de a gente ver as coisas que estão à volta, o que eu vi pareceu-me
bastante incomum: um homem atravessando a faixa de pedestre, mas não um homem
qualquer. Era alguém que parecia ser, mas não era.
Explico: os cabelos, os traços fisionômicos, a compleição física e
até a altura: tudo nele, fisicamente, era muito semelhante ao cantor Raul
Seixas. Mas tenho certeza de que não era ele, pois Raul Seixas já partiu desta
faz alguns anos.
“É mais um fã!” - pensei,
dando uma explicação a mim mesmo naquele momento. Porém, aquilo me tirou do
lugar-comum; e quando dei por mim já estava mergulhado numa questão filosófica:
inquietava-me o problema do ser e do parecer.
O sinal abriu. Segui o meu caminho e seguiu-me também uma
inquietação, que logo se transmutou em uma pergunta:
- “O que leva alguém a querer ser quem não é e negar o ser que é?”
A pergunta fez lembrar-me de um velho professor de ontologia, nos
tempos de faculdade, que dizia, vez por outra: “o primeiro sinal para uma coisa
não ser é parecer, pois o que é, não parece, é!” Enquanto rumava para o
trabalho, a questão se metamorfoseava em uma teia de novas formulações:
- “Por que queremos ser quem não somos? E o que é pior: fazemos
isso para sermos quem jamais poderemos ser?”
Sabia que aquele homem não era o cantor famoso e, por mais que se
esforçasse, jamais chegaria a sê-lo. E ainda tinha o agravante de, no esforço
de ser quem não era, acabar negando para si mesmo quem ele, de fato, é.
- “Seria uma frustração ontológica: querer mais ser outro alguém
do que querer ser a gente mesmo?”
Se for assim, o que vi foi alguém perdido na sua própria
existência, pois jamais deixará de ser quem é, e jamais será quem deseja ser. A
identidade é unívoca. E a possibilidade de ser outro está vedada para nós. A
gente até pode mudar o mesmo, mas será apenas uma mudança que permanecerá
circunscrita no âmbito do mesmo.
Assim, de tudo que vi, a única certeza que tenho é que não sei quem
eu vi, pois não era quem parecia, e não se parecia com quem de fato era.
Mas, como disse, e volto a repetir, parar no semáforo é também uma
ocasião de se ver as coisas que estão à volta.
O semáforo abriu e com ele veio a pressa do cotidiano. E com ela tudo é mais simples: Abri mão desse
infindável labirinto de perguntas e achei bastante sensato me conformar com a
ideia de que o que vi foi apenas mais um fã. Agora, repleto da paz da pressa, já
estava torcendo para encontrar o próximo semáforo com aquela luzinha verde
acesa, quando uma vozinha irritante sussurrou do mais recôndito do meu juízo:
- “Mas, o que é mesmo um fã!”
Epitácio Rodrigues
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