domingo, 22 de setembro de 2019

Sentido virtual da existência



Por muito tempo convivemos com uma separação entre pessoas famosas e pessoas comuns: nós, do lado de cá, elas do lado de lá. Isso porque alcançar um reconhecimento público em escala nacional era uma jornada muito difícil. Porém, parece que a internet fez cair por terra os muros que separavam as pessoas famosas das comuns.
Com o suposto fim das barreiras que enquartelavam o monopólio da fama, as pessoas “comuns” foram tomadas por uma sensação de que é possível um “faça sua fama você mesmo”. Foi-se o tempo em que ter o nome na capa de um livro era uma coisa muito difícil. Hoje, qualquer pessoa que tenha um nível mediano de escolaridade pode tornar-se um escritor e publicar um livro numa dessas editoras de autopublicação e ainda ter sua obra exposta numa loja virtual ao lado dos escritores já consagrados pelo público leitor. Com uma conta no youtube, ela pode ter seu próprio programa, seu reality show; com perfis nas redes sociais pode postar e compartilhar o que come, bebe, veste, pensa ou não pensa.
Mas, não para por aí. Dentre as mudanças advindas com a internet, está uma nova maneira de as pessoas se relacionarem com o próprio sentido da existência. De um certo modo, existir tornou-se sinônimo de “existir para o mundo”. Não se trata de um existir para o mundo somaticamente, em carne e osso, mas de uma forma de existência virtual e performática, na qual se condensam numa mesma imagem um conceito de profissão, fama, poder (visto como influência sobre outras pessoas), renda e reconhecimento social.
Os parâmetros de realização – entenda-se sucesso – é estabelecido pelo número de visualizações, curtidas e compartilhamentos de posts; pelo número de seguidores, like e deslike em canais e perfis de redes sociais. O aumento desses índices passou a ser a meta das interações nos ambientes virtuais e também o termômetro da famosidade.
Esse novo modo de existência cujo sentido se assenta na busca de visibilidade virtual é tão intenso que possui uma lexicografia própria: like, deslike, visualizações, cutucadas, seguidores, joinha, canal digital, digital influência, youtuber, perfil, legião de seguidores e congeneres. Até mesmo algumas expressões como amigo ganharam configurações conceituais diferentes: ser amigo, num ambiente virtual, é seguir, comentar e compartilhar postagens de alguém.
Não preciso dizer que nem todo mundo concorda com essas inovações na maneira de se viver. Aliás, algumas pessoas condenam, enfaticamente, tudo isso por considera-la uma forma de alienação, uma perda de tempo, ocupação de desocupados que não têm coragem de trabalhar de verdade. Penso que essa recente configuração da nossa existência é, em muitos aspectos, um caminho sem volta. Está aí. Não pode ser negada, nem abandonada sumariamente. O ambiente virtual é um novo espaço de interação humana e que altera profundamente a nossa forma de compreender a própria vida. Não dá para ignorar isso! O que precisamos fazer? Aprender a vivenciar essa experiência da forma mais saudável que pudermos, buscando entender os riscos aos quais estamos sujeitos nesse redesenho do nosso ser-no-mundo.
Penso que o nosso papel não é negar o óbvio, mas sugerir aos que se aventuram nessa empreitada do “faça você mesmo sua fama” que tirem o melhor proveito das lições dos famosos e famosas das antigas, sobretudo aquela que ensina: “existe uma diferença entre pessoa e personagem, entre ser e parecer”. Assim, a busca por visibilidade e visualizações como termômetros de fama não pode ser entendida como um sentido da existência porque o virtual é imagem e somos muito mais do que isso. Uma imagem nunca vai dar conta de tudo o que somos e do sentido que buscamos para a nossa existência.

Epitácio Rodrigues, 22/09/2019

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