Aos
olhos de muitos estrangeiros, nós brasileiros somos acolhedores, bem-humorados
e muito dados a brincadeiras. A nossa alegria, apesar das dificuldades da vida,
se manifesta não apenas no sorriso natural que exibimos a toda instante, mas na
maneira como nos portarmos e falamos. Parece que nós aprendemos muito cedo a
sorrir de nós mesmos e das situações da vida. Mas, nesse quadro no qual somos figuras pintadas com as cores mais vivas
e alegres, na maioria das vezes deixa-se à sombra fundos sombrios. Gostamos tanto dessa imagem, que somente em
algumas situações pontuais percebemos as falhas
nesse sistema icônico. Nessas ocasiões, surge uma desconfiança que, se
levada a sério, pode trazer à tona uma importante questão: será que isso que
nos afanamos como uma qualidade identitária, não esconde também um lado
tenebroso?
Comecei
a desconfiar mais seriamente dessa imagem que temos de nós mesmos, depois de um
relato que ouvi recentemente. Uma amiga me contou que numa reunião de umas
quarenta pessoas, uma delas, querendo ser engraçada, fez uma piada jocosa referindo-se
a alguém presente. Mas, o que ela via como uma piada, alguns dos presentes consideram
um ato de racismo, outros entenderam como injúria racial. Teve também quem não
visse nada de mais na fala do colega. A pessoa referida na suposta piada ficou
tão constrangida que abandonou a sala aos prantos. O autor da piada tentava se
explicar frente aos outros colegas como único argumento: a alegação de que tinha
sido apenas uma brincadeira. Acreditava que isso era razão suficiente para se
eximir das implicações legais da sua fala. Não convenceu! No dia seguinte, a suposta
piada virou caso de polícia e de justiça.
O
relato me fez perceber uma coisa estranha entre nós. Para muita gente, a graça
da coisa é fazer “graça” com os outros e usar a desculpa da brincadeira como justificativa.
A lógica da coisa é mais ou menos assim. Inverte-se os papéis, de forma que o
problema não estaria na piada, mas na falta de senso de humor daquele com o
qual se faz a piada, que não sabe brincar. Como se quisesse dizer aos que não
têm senso de humor: “não confundam as coisas, o alegre povo brasileiro não
cultiva práticas machistas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas e nem de
preconceito de classe. O alegre povo brasileiro é assim mesmo: gosta de fazer
graça de tudo! ” Nessa lógica, a frase “não, foi só uma brincadeira! ” funciona
como um salvo indulto para as situações de humilhação, constrangimento, e até
de atos de violência. Aos que repudiam essas práticas, recai o veredicto de
falta de senso de humor.
Nesse
entendimento, quando alguém diz que é brincadeira, espera que o outro aceite a
ofensa como não-ofensa, porque não estava falando sério e sua fala não era “de
verdade”. Não havia intenção de humilhar, constranger ou até mesmo de agredir a
outra pessoa. Se, por acaso, alguém fica ofendido, esse resultado deve entrar
na cota de dano colateral não-intencional. Mas, a coisa não é bem assim. Parece
que o alegre povo brasileiro precisa aprender que, por mais paradoxal que isso
possa parecer, brincadeira é também coisa séria! Primeiro, porque quando se diz
que uma fala, um gesto ou uma ação é brincadeira, deve-se perguntar, por
exemplo: “na perspectiva de quem? ” Uma fala que alguém acha muito engraçada,
pode não ser para aquele de quem se fala. Ao proponente de uma brincadeira
saudável, cabe a prerrogativa de ser capaz de empatia, de se perguntar como
outro se sentirá com isso. Não pode ser saudável uma piada que, uma vez proferida,
quem disse sorriu, mas aquele de quem foi dito chorou ou sofreu.
É
verdade que algumas pessoas, em nome da liberdade de expressão e de outros
valores da democracia contestam esse entendimento, reclamando que hoje não se
pode mais dizer nada porque tudo é ofensa, é racismo, é machismo... “Onde está
a liberdade?! - questionam. Eu até entendo que não se deva pilhar por tudo o
que se diz, mas a liberdade de expressão não é um conceito absoluto. É também
uma exigência das sociedades democráticas, guardiãs das liberdades individuais,
a responsabilidade pelos seus atos e o respeito aos outros. Você tem a liberdade
de falar e agir, mas também a responsabilidade de assumir as consequências do que
diz e faz.
Por
fim, a capacidade de avaliar as possíveis consequências de uma situação, de uma
ação e de uma afirmação é um sinal de maturidade. É assim que gente grande
brinca e nisso reside a graça da coisa toda.
Epitácio Rodrigues
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