Desde
que li a Náusea de Sartre e os
relatos de Jacques Maritain sinto um certo incômodo literário com praças e
jardins públicos. Mas, às vezes, sento-me um pouco na praça principal desta
pacata cidade do interior e fico observando as pessoas que passam. Gosto de ver
seus rituais involuntários e inconscientes, enquanto transitam. Mas ontem, o
que chamou a minha atenção estava quase imóvel. Uma garota aparentando uns
dezessete anos, sentada sobre o banco, num movimento muito discreto, alimentava
os pombos em volta de si mesma. Os pássaros mais ousados chegavam mesmo a pousar
junto a ela. Meus olhos pararam sobre aquela cena mais tempo do que eu
pretendia. O roteiro dramático que se encenava diante de mim falava de uma
jovem mergulhada numa absorvente ausência de si que seu corpo já não
representava uma ameaça aos pombos que se alimentavam em suas mãos. Assim, o
que parecia harmonia entre os protagonistas daquela peça dramática na verdade
marcava a distância abissal que os separava. Aquela jovem, naquele estado,
causou em mim uma sensação estranha, algo como uma violência silenciosa, pois
seu grito não chegava aos meus ouvidos, mas aos olhos.
Contemplei
a cena por uns quinze minutos, depois retomei o meu caminho. Mas, fugir do
cenário não me devolveu a liberdade. Aquela imagem agarrou-se à minha memória
como uma inoportuna moita de carrapicho que se prende à roupa. No dia seguinte,
no trabalho, comentei o fato com uma colega que, por coincidência, a conhecia:
Reservadamente começou a resenhar oralmente a sua biografia e me senti
mergulhando num longa-metragem dramático. Para resumir o enredo: tratava-se de
uma jovem concebida num encontro fortuito da mãe com um homem desconhecido e
por isso ignora quem era seu pai. Ainda criança, presenciou o assassinato da
própria mãe. Abandonada à própria sorte, foi cooptada por uma mulher dona de
uma boca de fumo, que a colocou para fazer entrega de uns “bombons” que ela não
podia comer. Seus dias de infância e adolescência transcorreram nesse esquema:
ir à escola e fazer entrega, em troca de teto e comida e roupa. Por causa dessa
estranha ocupação, a vida lhe ensinou a arte da astúcia, das mazelas e outros
ofícios.
Naquela
tarde, quando a vi na praça, fazia pouco tempo que a polícia tinha desbaratado
os negócios da mulher, que foi presa por tráfico. Mas uma vez, a jovem da praça
ficou abandonada à própria sorte. Novamente, foi acolhida para morar e
trabalhar numa casa de pessoas que a conheciam, só que desta vez trabalhar e
viver condignamente.
Conhecer
um pouco mais daquela jovem me fez pensar no quanto é difícil construir uma
existência à altura da dignidade humana, quando a roda da fortuna só lhe oferece desafios e desilusões: desde o
nascimento e seu caminho espiral parece levar sempre ao mesmo destino: a
solidão. E o pior de toda solidão é que você consegue estar sozinho, mesmo
cercado de pessoas. Um mundo que me é indiferente porque não digo nada a eles e
eles não mais me dizem nada.
A
garota na praça lembrava um refrão de triste de Raul Seixas. Só que com uma
pesada variação. Ao invés de repetir “Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça,
dando milho aos pombos”. A cena dos pombos pousando sobre ela me dizia que eu
estava diante de uma estátua inerte que, ainda que se movesse, parecia não sair
do mesmo lugar: do lugar chamado solidão. Mas, como a praça é o lugar para quem
passa, quando passo ali hoje, gosto da ideia de saber que ela encontrou um
lugar chamado casa que fica para além daquela prisão sem muro chamada solidão.
Epitácio
Rodrigues
Professor
de Filosofia e escritor
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