quinta-feira, 25 de junho de 2015

OS LEITORES E A APROPRIAÇÃO INDÉBITA



Estou me convencendo que muitos bons leitores são potenciais apropriadores indébitos. É claro que uma afirmação dessa natureza pede uma explicação. Ainda mais quando todo o discurso atual vincula-se à ideia de que a leitura é uma via fiável do processo civilizador e do crescimento cultural da sociedade. Se o processo civilizatório passa, frequentemente, pela leitura, como posso bruscamente dizer que o leitor é um pretenso ladrão de livros?

Se eu disser que ele se apropria de saberes, dizeres e até sentimentos que são de outros, serei combatido com o contra-argumento que aqueles saberes, dizeres e formas de sentir se tornaram bens públicos, partilhados pelo autor. Nesse caso, não é roubo, mas doação.

Mas devo esclarecer que a razão para eu dizer isso é bem mais modesta. É uma conclusão a que cheguei a partir de um processo indutivo. Dias atrás, encontrei um amigo que fazia sua caminhada vespertina e, após os cumprimentos de práxis, saiu com essa declaração: “ei, tô com um livro teu pra devolver!” Disse a ele: “tudo bem, deixa lá em casa ou no meu trabalho.” Ele concordou. Despedimo-nos e o livro até essa data não chegou ao seu destino.

Hoje encontrei mais duas pessoas que, apesar de situações diferentes, após os cumprimentos, fizeram aquela mesma afirmação: “tô com um livro teu!” Meneei a cabeça afirmativamente, mas um tanto incrédulo a respeito da possibilidade de tê-los de volta. As duas situações me fizeram lembrar de vários títulos que já emprestei e não recebi de volta. A Ética à Nicômaco, de Aristóteles, O segundo tratado sobre o governo, de John Locke, O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, O manual, de Epicteto, o Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, o Da brevidade da Vida, de Sêneca e tanto outros...

Enquanto recordava, dei-me conta da quantidade de pessoas às quais já emprestei livros. Por um momento, fiquei feliz, pois o meu lado utópico e até idealista me fez crer que estava contribuindo para o processo civilizatório de muita gente, porém como quase sempre os livros não voltam, estou começando a duvidar dessa civilidade que gera apropriação indébita.

Epitácio Rodrigues da Silva

Crônica publicada na página da Revista da Cultura. Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-06-25/OS_LEITORES_E_A_APROPRIA%C3%87%C3%83O_IND%C3%89BITA.aspx

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