Estou me
convencendo que muitos bons leitores são potenciais apropriadores indébitos. É
claro que uma afirmação dessa natureza pede uma explicação. Ainda mais quando
todo o discurso atual vincula-se à ideia de que a leitura é uma via fiável do
processo civilizador e do crescimento cultural da sociedade. Se o processo
civilizatório passa, frequentemente, pela leitura, como posso bruscamente dizer
que o leitor é um pretenso ladrão de livros?
Se eu disser
que ele se apropria de saberes, dizeres e até sentimentos que são de outros,
serei combatido com o contra-argumento que aqueles saberes, dizeres e formas de
sentir se tornaram bens públicos, partilhados pelo autor. Nesse caso, não é
roubo, mas doação.
Mas devo
esclarecer que a razão para eu dizer isso é bem mais modesta. É uma conclusão a
que cheguei a partir de um processo indutivo. Dias atrás, encontrei um amigo
que fazia sua caminhada vespertina e, após os cumprimentos de práxis, saiu com
essa declaração: “ei, tô com um livro teu pra devolver!” Disse a ele: “tudo
bem, deixa lá em casa ou no meu trabalho.” Ele concordou. Despedimo-nos e o
livro até essa data não chegou ao seu destino.
Hoje encontrei
mais duas pessoas que, apesar de situações diferentes, após os cumprimentos,
fizeram aquela mesma afirmação: “tô com um livro teu!” Meneei a cabeça
afirmativamente, mas um tanto incrédulo a respeito da possibilidade de tê-los
de volta. As duas situações me fizeram lembrar de vários títulos que já emprestei
e não recebi de volta. A Ética à Nicômaco, de Aristóteles, O segundo
tratado sobre o governo, de John Locke, O pequeno príncipe, de
Antoine de Saint-Exupéry, O manual, de Epicteto, o Assim falou Zaratustra,
de Nietzsche, o Da brevidade da Vida, de Sêneca e tanto outros...
Enquanto
recordava, dei-me conta da quantidade de pessoas às quais já emprestei livros.
Por um momento, fiquei feliz, pois o meu lado utópico e até idealista me fez
crer que estava contribuindo para o processo civilizatório de muita gente,
porém como quase sempre os livros não voltam, estou começando a duvidar dessa
civilidade que gera apropriação indébita.
Epitácio Rodrigues da
Silva
Crônica
publicada na página da Revista da Cultura.
Link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-06-25/OS_LEITORES_E_A_APROPRIA%C3%87%C3%83O_IND%C3%89BITA.aspx
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