quinta-feira, 14 de maio de 2015

A MENINA E A CACIMBINHA



No tempo de antigamente uma menina adoeceu de tuberculose.
Como as pessoas não podiam chegar perto dela, isolaram a menina e a levaram para o outro lado do rio. Todo dia alguém atravessava o rio para lhe deixar o alimento.
Quando tinha sede, a menina cavava de leve na areia próxima do rio até encontrar água, formando uma cacimbinha, e dali bebia água limpa e filtrada.
Nas margens desse rio, tinha muitos Muçambês, planta que cresce até a altura da cintura de um homem adulto e tem flores brancas com detalhes lilás.
Ora, ao beber a água da cacimbinha, a menina também bebia os nutrientes que saiam do Muçambê. De tanto beber da água que tinha a essência dessa planta, a menina acabou se curando da tuberculose.

*

Ouvi essa história de uma amiga, que por sua vez ouviu da sua avó, que viveu lá no sertão dos Inhamuns cearense e só Deus sabe de onde essa história é.
Imediatamente me lembrei dos contos de fadas, histórias recolhidas da tradição oral que foram registradas no papel, sendo modificadas ao longo dos séculos.
Pensei em transformar a história dessa menina em um desses clássicos infantis.  “A Menina e a Cacimbinha (note que já temos um bom título!) seria uma narrativa tenebrosa e com o tom sombrio de Perrault e dos Grimm ou traria a leveza e os encantamentos que o tempo revestiu a essas histórias, tornando-as infantis? Que espírito da floresta ou animal seria o elemento mágico (dispenso a fada!) que daria propriedades curativas à água da cacimbinha? Seria a própria planta personificada que, ouvindo o drama e o lamento da menina, teve compaixão?
Minha imaginação levou, transformou, encantou de várias formas e maneiras essa história, mas minha mão, inábil, como sempre, não conseguiu acompanhar seu voo.
Pensei ainda em transformar a história em uma narrativa mais longa e assim encobrir meus cacoetes literários. Quem sabe um conto ou um romance?
Então me deparo com um problema maior que eu: as exigências.
Parte do público, editores e mercado têm suas exigências e uma forte pressão é feita para que as histórias (literárias, em quadrinhos, dos filmes, das séries, das novelas...) se adaptem aos gostos e tendências, tornado-as comercialmente mais vendável. Um vilão malvado, um interesse romântico, um nome chamativo para o personagem... (a lista é longa e sua extensão é semelhante aos finais felizes dos contos de fada).
Ora, as histórias da tradição oral são vagas justamente porque são narrativas que nascem do imaginário coletivo e as lacunas e espaços em branco que elas trazem ocorrem justamente para se adequar melhor à imaginação de quem as escuta.
Afinal, quem é o antagonista personificado em O Patinho Feio? Qual o romance em Joãozinho e Maria, em O Gato de Botas e no Pequeno Polegar? Qual o nome de Chapeuzinho Vermelho, da Cinderela e da Bela Adormecida? Quais as características físicas – além de ser branca e bonita – da Branca de Neve? Qual o nome do local onde todas essas histórias acontecem?
Volto a pensar em minha longa narrativa (Ah, que título!) e encontro-me empacado nas primeiras linhas. É melhor assim. A tuberculose não matou a menina, graças à essência do Muçambê, mas, ao tentar complementar a sua história com tolas, supérfluas e imprestáveis exigências, com certeza eu mataria a essência, da sua história e a dela também.

***

Menina,
Não sei se sua história aconteceu ou não.
Se aconteceu, fico feliz que você tenha sobrevivido à doença. Se não aconteceu, fico feliz que a sua história tenha sobrevivido por tanto tempo e tenha chegado até mim.
Você, que existe no universo das palavras, acaba de transpor a realidade da oralidade e passa a fazer parte também do mundo da escrita (só peço desculpas pela minha retórica e meu estilo).
Algo que chamou minha atenção foi a sua solidão.
Você sobreviveu e superou a solidão do rio. Você superou a solidão de ser lembrança, de ficar presa na memória e na palavra não dita. Agora que você está no reino da escrita, espero que supere a solidão do branco do papel e das palavras que aguardam serem lidas.

A Paz.

João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@gmail.com
(Crônica publicada na revista da Cultura: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-14/A_MENINA_E_A_CACIMBINHA.aspx).

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