No tempo de antigamente uma menina
adoeceu de tuberculose.
Como as pessoas não podiam chegar
perto dela, isolaram a menina e a levaram para o outro lado do rio. Todo dia
alguém atravessava o rio para lhe deixar o alimento.
Quando tinha sede, a menina cavava
de leve na areia próxima do rio até encontrar água, formando uma cacimbinha, e
dali bebia água limpa e filtrada.
Nas margens desse rio, tinha muitos
Muçambês, planta que cresce até a altura da cintura de um homem adulto e tem
flores brancas com detalhes lilás.
Ora, ao beber a água da cacimbinha,
a menina também bebia os nutrientes que saiam do Muçambê. De tanto beber da
água que tinha a essência dessa planta, a menina acabou se curando da
tuberculose.
*
Ouvi essa história de uma amiga,
que por sua vez ouviu da sua avó, que viveu lá no sertão dos Inhamuns cearense
e só Deus sabe de onde essa história é.
Imediatamente me lembrei dos contos
de fadas, histórias recolhidas da tradição oral que foram registradas no papel,
sendo modificadas ao longo dos séculos.
Pensei em transformar a história
dessa menina em um desses clássicos infantis.
“A Menina e a Cacimbinha (note que já temos um bom título!) seria uma
narrativa tenebrosa e com o tom sombrio de Perrault e dos Grimm ou traria a
leveza e os encantamentos que o tempo revestiu a essas histórias, tornando-as
infantis? Que espírito da floresta ou animal seria o elemento mágico (dispenso
a fada!) que daria propriedades curativas à água da cacimbinha? Seria a própria
planta personificada que, ouvindo o drama e o lamento da menina, teve
compaixão?
Minha imaginação levou,
transformou, encantou de várias formas e maneiras essa história, mas minha mão,
inábil, como sempre, não conseguiu acompanhar seu voo.
Pensei ainda em transformar a
história em uma narrativa mais longa e assim encobrir meus cacoetes literários.
Quem sabe um conto ou um romance?
Então me deparo com um problema
maior que eu: as exigências.
Parte do público, editores e
mercado têm suas exigências e uma forte pressão é feita para que as histórias
(literárias, em quadrinhos, dos filmes, das séries, das novelas...) se adaptem
aos gostos e tendências, tornado-as comercialmente mais vendável. Um vilão
malvado, um interesse romântico, um nome chamativo para o personagem... (a
lista é longa e sua extensão é semelhante aos finais felizes dos contos de
fada).
Ora, as histórias da tradição oral
são vagas justamente porque são narrativas que nascem do imaginário coletivo e
as lacunas e espaços em branco que elas trazem ocorrem justamente para se adequar
melhor à imaginação de quem as escuta.
Afinal, quem é o antagonista
personificado em O Patinho Feio? Qual
o romance em Joãozinho e Maria, em O Gato de Botas e no Pequeno Polegar? Qual o nome de Chapeuzinho Vermelho, da Cinderela e da Bela Adormecida? Quais as características físicas – além de ser
branca e bonita – da Branca de Neve?
Qual o nome do local onde todas essas histórias acontecem?
Volto a pensar em minha longa
narrativa (Ah, que título!) e encontro-me empacado nas primeiras linhas. É melhor
assim. A tuberculose não matou a menina, graças à essência do Muçambê, mas, ao
tentar complementar a sua história com tolas, supérfluas e imprestáveis
exigências, com certeza eu mataria a essência, da sua história e a dela também.
***
Menina,
Não sei se sua história aconteceu
ou não.
Se aconteceu, fico feliz que você
tenha sobrevivido à doença. Se não aconteceu, fico feliz que a sua história
tenha sobrevivido por tanto tempo e tenha chegado até mim.
Você, que existe no universo das
palavras, acaba de transpor a realidade da oralidade e passa a fazer parte
também do mundo da escrita (só peço desculpas pela minha retórica e meu
estilo).
Algo que chamou minha atenção foi a
sua solidão.
Você sobreviveu e superou a solidão
do rio. Você superou a solidão de ser lembrança, de ficar presa na memória e na
palavra não dita. Agora que você está no reino da escrita, espero que supere a
solidão do branco do papel e das palavras que aguardam serem lidas.
A Paz.
João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@gmail.com
(Crônica publicada
na revista da Cultura: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-14/A_MENINA_E_A_CACIMBINHA.aspx).
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