segunda-feira, 18 de maio de 2015

A MORTE DO OUTRO: BANAL, INDIFERENTE OU ESPETACULAR


Nem todas as crônicas são humoradas, nem todas as crônicas contam histórias interessantes, nem todas as crônicas servem para desopilar. Às vezes, um texto pequeno sobre uma situação do cotidiano precisa ser algo mais do que isso. Há momentos nos quais o fragmento do cotidiano que se impõe ao cronista para ser eternizado quer também ser uma ocasião para que pensemos a respeito do que estamos fazendo da nossa existência coletiva. Essa é uma crônica que eu nunca quis escrever, mas não consegui silenciar o grito que ecoa interiormente desde o dia em que presenciei o fato que mencionarei. Não vou narrá-lo em suas especificidades, pois esse é um daqueles casos nos quais o adágio bis placet (repetir agrada) não lhe cai bem. Essa crônica é mais uma inquietação filosófica sobre um fato ansiando para ser aprisionada ad aeternum no papel.
Num sábado à tarde, precisei ir ao centro da cidade comprar um objeto. Numa certa altura do caminho, percebi um aglomerado de pessoas: policiais, agentes de trânsito e muitos curiosos. Como a rua estava interditada, parei o carro e me aproximei do local. Entendi que se tratava de um acidente com vítima fatal. Sobre o asfalto havia um corpo senil coberto com uma lona amarela. Na hora, causou-me certo mal-estar ver que os curiosos não demonstravam preocupação em saber quem era a pessoa, se conheciam seus familiares. Na verdade, a cena lembrava mais um espetáculo. As pessoas, com seus celulares em punho, disputavam entre si o melhor ângulo para fotografar o corpo coberto, o sangue espalhado pelo asfalto, para, logo em seguida, postar no facebook e compartilhar com seus conhecidos como quem assistia a um show.
Eu sei que a morte sempre foi a nossa questão não resolvida. Ainda mais que a morte do outro tem esse poder de colocar diante de nós a consciência da nossa finitude: “tudo que está vivo morre!” Por essa razão é que o ser humano, ao longo da história, tentou não só entender, mas até encontrar maneiras de fugir desse fim definitivo. Em vão, criou mitos, religiões, sistemas filosóficos e teorias científicas.
Alguns mitos, com suas narrações etiológicas, manifestam esse nosso anseio de driblar a morte, do qual as famosas peripécias de Sísifo, personagem da mitologia grega, são um exemplo eloquente; já os teólogos criam tanatologias para nos explicar como será a vida após esse fim temporal. Tratados de Escatologia descrevem como será o Paraíso, o juízo final individual e do mundo, o que é o Purgatório, a Salvação e a felicidade eterna ou Contemplatio Dei; os filósofos, desde Sócrates (para quem a filosofar é aprender a morrer), abordam a questão, ora com mais, ora com menos ênfase. Inúmeros textos filosóficos, partindo da consciência da finitude humana, tentam nos convencer de que não é a morte, mas a vida o foco do interesse, pois a nossa responsabilidade é fazer a vida valer a pena, enquanto a morte não está presente. Os homens dedicados às ciências experimentais dedicam-se a pesquisar formas de prolongar a vida: a medicina regenerativa, a robótica.
Mas como o homem efêmero, aquele que se ocupa apenas das suas inquietações mais imediatas, tem lhe dado com esse fenômeno é o que pode ser preocupante: as pessoas nos últimos anos passaram a considerar a morte do outro como um fenômeno banal. Frente à morte de alguém de quem elas não têm nenhuma relação de parentesco, passaram a adotar uma peculiar forma de banalidade, cujas reações oscilam entre a indiferença e o desejo de espetáculo.
O fato curioso é que a morte como espetáculo só se torna manifesta quando se dá de forma violenta ou trágica. Não há respeito, solidariedade ou comoção. O foco dos espectadores recai sobre os elementos cênicos indicadores da tragicidade do fim. Há um interesse especial pelos elementos indicadores do grau de violência ou tragicidade presentes no corpo do cadáver: fotografar, filmar, postar na internet, compartilhar e curtir. Porém, quando a morte não apresenta sinais de tragicidade ou violência, o comportamento mais comum frente ao corpo é a indiferença. Uma morte sem genitivo, sem complexo causal trágico ou violento é considerada “uma morte menor”. Se as pessoas não estão diretamente envolvidas por algum grau de parentesco próximo, elas apenas olham, passam e seguem em frente.
Enquanto contemplava estupefato aquele comportamento, fiquei me perguntando: por que o trágico e o violento fascinam tanto a sociedade hoje? Parece que somos educados à busca do trágico, do violento, do pavoroso, do demoníaco da existência.
Sei que o fenômeno da morte não deixou de causar medo às pessoas, pois basta a certeza da sua iminência na vida de um enfermo, por exemplo, para se evidenciar as manifestações de angústia e desequilíbrios emocionais. Mas o que chama atenção é o fato de que a morte do outro, o não-parente, o não-conhecido, tornou-se uma realidade banal, fugaz e indiferente, quando sua causa parece ser natural. Porém passou a ser celebrado como espetáculo, quando se trata de uma morte violenta ou trágica, ainda que a vítima seja totalmente desconhecida pelos espectadores.
Eu estava ainda mergulhado périplo de constatações e indagações, quando o agente de trânsito veio me avisar que a pista já estava liberada. Segui em frente, no dia seguinte procurei saber mais informações sobre o acidente, no qual uma pessoa teve, de maneira tão brusca, a sua existência interrompida. Pensei na violência do trânsito, nos atos irresponsáveis de muitos condutores que associam bebida alcoólica com direção ao volante. Mas sobretudo me fez pensar que o modo como nos portamos frente à morte do outro é um indicativo de como respondemos à pergunta: o que é o ser humano?

Epitácio Rodrigues da Silva
Prof_epitacio@hotmail.com
(Crônica publicada no jornal O Povo on line. Link:

http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/05/18/noticiajornaldoleitorcronicas,3439757/a-morte-do-outro-banal-indiferente-ou-espetacular.shtml.

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