segunda-feira, 4 de maio de 2015

LEMBRA, AMADA? – RELÍQUIAS

Lembra, amada, daquela vez que, sob o reflexo da manhã nos teus olhos claros, você disse o quanto me amava, mas se queixou porque eu não gostava de ti? A inexperiência da vida, a preocupação com o vestibular que nós faríamos naquele mesmo ano e o medo, minha fiel companhia, fizeram-me calar e – tal qual aquele verso daquele poema de Neruda – o perfume de uma flor que não subia à terra foi o silêncio de todo o grande e puro amor que eu tinha por ti.
Lembra, amada, daquela noite em que meu coração ficou despedaçado? Eu gostava dela, mas ela gostava dele. Eu, que usava uma camisa azul com listras brancas, calça jeans azul e tênis branco com detalhes azuis, descobri que ela, interesse do meu coração, gostava dele no mesmo dia em que ele estava usando uma camisa branca com listras azuis, calça jeans branca e tênis azul com detalhes brancos. (Ah, os que me taxam como esquisito se soubessem como eu sou vítima até dos detalhes cruéis do acaso ou do destino entenderiam porque sou assim, mas são tantos os que preferem estar no grupo dos que falam sem entender). Você o tinha como filho. Eu o tinha como grande amigo. Eles acabaram namorando. Lembra, amada, como teus olhos tocaram minha tristeza? Como diz a música, “com um toque de pincel”, você tocou meu coração, deu-lhe um propósito, ensinou-lhe a bater novamente por amor a alguém.
Lembra, amada, quando, na fraqueza e no delírio da enfermidade, eu achei ter encontrado a morte? Como aquele filme, a imagem da tua lembrança teve um brilho tão intenso que eu juntava forças para fugir dos meus devaneios febris e escapar da morte. Descobri que eu queria continuar vivendo para ter mais uma oportunidade para te ver e foi assim que eu soube que estava te amando. Lembra, amada, como você soube? Por alguma razão você pegou o ônibus e desceu no mesmo lugar que eu (e eu estava justamente rezando para te encontrar). Lembra, amada, da minha oração para vencer meu companheiro fiel? “Se eu a encontrar hoje e ela estiver vestindo alguma roupa verde, eu me declaro para ela.” Eu, sem acreditar no que estava vendo  – não era comum nos vermos naquele dia da semana e você ainda estava de blusa verde –, ouvia você falar que não sabia o porquê de estar ali. Depois você, sem acreditar, ouvia a confissão da minha oração, da minha alma e do meu coração. Lembra, amada, o que eu achava sobre aquela noite? Que nenhum de nós realmente voltou para a casa. Tudo estava igual ­(o caminho, as ruas, as casas), mas havia algo diferente, que me dizia que o mundo não era o mesmo. Sua resposta para minha pergunta piegas “será o mundo deferente aos olhos de quem é amado”, ainda hoje guardo: “a vida é diferente aos olhos de quem não tem medo!”. Como na canção, meu medo terminava estando ali, ao seu lado.
Lembra, amada, do medo que você sentia? Você tinha medo que eu me apaixonasse por ti. Mas como não me apaixonar? Na faculdade, os gregos preparavam-me um banquete; no céu, a lua e as estrelas segredavam-me coisas que eu só passei a entender por sua causa; nas artes, toda poesia ganhava sentido e explicação com a lembrança do teu rosto. Lembra, amada, que naquele supermercado, entre a seção de frutas e verduras e a dos frios, escutamos pela primeira vez a música “Por Onde Andei”? Eu preferia ter ouvido “Mantra”, mas depois passei a gostar dela também, principalmente porque ela inicia pedindo desculpa (coisa que eu sempre precisei e necessito pedir a você) e pela explicação profética que, em sua repetição, ela traz do hoje.
Lembra, amada, daquele dia que eu olhei pela janela do trabalho e pensei ter te visto? Eu comecei a escrever um livro que nunca terminei, pois só consegui escrever o trecho que pensar ter te visto me inspirou. Lembra, amada, do trecho do livro que você, única leitora, copiou no seu caderno?

“Seus olhos demonstraram surpresa ao me ouvir dizer que esperava por ela. Diante do seu silêncio, expliquei: "Eu sempre espero que o meu dia melhore: se está ruim, quero que ele melhore; se está bom, quero que ele melhore ainda mais! Por isso eu sempre estou esperando por você: encontrá-la faz com que o meu dia melhore!” Então ela sorriu e o Sol nasceu em minha alma. Aproximamos um do outro e fizemos a única coisa que os nossos corações pediam: beijamo-nos e aquele beijo foi eterno, pois o Tempo não ousou prosseguir! Ah, little darling , era tanta coisa que eu queria te falar... É uma pena que você nunca voltou e eu vivo dias que nunca são melhores, sempre a te esperar!"

 Lembra, amada, quando eu estava esgotado, sem força, depois de ter gasto toda a minha energia, mas sem nenhuma esperança de vitória? Eu caminhava no automático e acabei te encontrando – você disse que foi até ali para ver se me encontrava. As luzes estavam se apagando, as portas e as janelas começavam a fechar, as pessoas saiam. Lembra, amada, como olhei para você e caminhei em sua direção? Nos teus braços morri, nos teus braços renasci. Trilhamos juntos o caminho da conquista do que, nos momentos antes de te encontrar, eu achava ser mais uma derrota.
Lembra, amada, naquele dia dos namorados? Você disse que seu coração estava fechado. Lendo o poetinha escrevendo sobre solidão, eu não consegui esquecer você. Lembra, amada, daquela vez que conversamos? Eu li para você o trecho do livro e disse que não era a resposta, mas que queria ser. Lembra, amada, que a minha pergunta poética suscitou em você uma resposta filosófica? Você disse “sim” e eu, que sempre tive dificuldade em entender o pensamento filosófico, só fui entender três dias depois que você tinha aceitado. Lembra, amada, das tuas palavras que velaram o meu sono? Mesmo eu não sabendo, a alegria da tua existência fez-me voltar a ter fé e naquela noite, depois de muito tempo, fiquei de joelhos e rezei. Voltei a dormir em paz.
Lembra, amada, dessas coisas? Ah, a pergunta é retórica e a resposta é irrelevante. Importante é saber e não esquecer que nos teus momentos de tormentos e dor inevitáveis, quando minha atrasada presença finalmente acontecer, se ela for uma pausa no teu pesadelo e meu abraço for um amparo, é porque só estou retribuindo todo o bem que você sempre me fez; que os sonhos que o coração intensamente viveu estão guardados na memória; e que, na longa e sinuosa estrada em que vivo, você é o que me faz vencer aqueles versos do poeta nunca publicado que diz: “Pelo prisma da verdade, seja revelado / um sentido para além da sombra da inutilidade / às ações que no coração tenho como relíquias”.


João Paulo DiCarvalho

jpcmdm@gmail.com
Crônica publicada na revista da Cultura on line.link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-05-04/LEMBRA_AMADA_%E2%80%93_REL%C3%8DQUIAS.aspx

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