Nesta velha casa em metamorfose, já vivi muitos invernos. E
os que comigo habitaram-na, ao longo desse tempo, juntos, enfrentaram muitas
lutas. Entre essas paredes que hoje abrigam esse caixão com esse senhor, ali
deitado, que parece dormir, passei muitos momentos bons e muitos momentos
difíceis. Cheguei aqui pela primeira vez num misto de alegria e dúvida. Era
mais um monturo que um terreno, mas, foi o que consegui comprar.
Em várias noites pretéritas meus amigos aqui vieram. E
comemoramos. Uns traziam vinho, outros conhaque. Um amigo pedreiro me ajudou e
juntos, eles, o conhaque, o vinho e eu conseguimos encher as bases. Havia mais
boa vontade que pedra, concreto, cimento e ferro. Também havia mulheres que
ajudavam a servir as coisas, o vinho, o conhaque, os tijolos e a massa. Elas
ainda dançavam alegremente. Uma amiga trouxe um lenço, outra pediu a um amigo
dinheiro. Disse que era pra fazer um café. Outra trouxe flores que colheu, se
bem me lembro, nos jardins alheios. Pequeninas flores, amarelas, vermelhas,
brancas. Não são daquelas luxuosas das floriculturas, mas dessas que aparecem
por tudo que é lugar.
Tudo isso alegra o coração de um homem. Não obstante isto
aconteça num funeral. A certeza do tempo que passou ainda não é certa. E como é
certa. Aquele aparelho de som ali calado, já dançamos muitos escutando velhas
canções, assim espantávamos os fantasmas da pobreza. Hoje o fantasma quer
ficar. Não me conformo, não obstante a vida difícil que tínhamos. Uma amiga
pegou um lenço e enxugou as lágrimas. Essa atitude me causa estranhamento,
agora que não há a possibilidade de julgamento dos vivos, ouso de dizer, que é
um choro suspeito.
Está chegando o fim da festa, todos estão indo embora, eu
fico sozinho. Noutros tempos tinha companhia de sobra. Nenhuma tão séria. A
inconstância é inimiga do amor. Mas amei também. E dessa árvore não houve
frutos. Nem flores. Não consigo sair até a porta e sinto o obscuro dever de
ficar aqui. Se pelo menos o senhor do caixão ainda estivesse aqui. Mas não. Os
outros que saíram levaram-no. Em meio a choro e soluços levaram-no.
Eu já disse enfrentamos muitos invernos aqui? E secas também!
Houve época que éramos farrapos de gente. Quando o tempo melhor sorriu quis uma
companheira, mas já não inspirava a confiança de ninguém. Bebíamos desde a dor
da miséria à satisfação da bonança, bebíamos tudo e tudo acabava, nada é pra
sempre. Esses móveis que aqui estão: sofá velho, televisão, mesa, cadeiras,
fogão, panelas, cama e tantos outros necessários ao funcionamento de um lar
habitado; sinto que não precisarei usar nenhum. Quero dormir e não tenho sono.
Tenho sono e tenho medo de dormir. Aliás, meu medo é acordar numa manhã
cinzenta e triste de outono. O vento gélido vem esbofeteando a porta. Há três
horas que todos saíram seguindo caixão. Ninguém voltou! Por que será? Se pelo
menos aquele senhor que estava no caixão estivesse aqui.
Hesito sobre a possibilidade de usar algum aparelho. O
computador está ligado. Quem o ligou? Lembro que enquanto muitos choravam uma
jovem estava sentado em frente a esse aparelho. Chego mais perto. Ainda tenho
medo dessa máquina. Ela sempre me assustou com essa capacidade da onipresença
dissimulada. Chego mais perto, e veja na tela a página de uma rede social. A
página é da jovem. Detenho-me um instante sem querer ler o que diz aquela
mensagem em sua linha do tempo. É inevitável. Chego mais próximo, vejo algumas
fotos, sou eu, meus amigos, sou eu sorrindo. Quando leio a mensagem em letras
chamativas, a declaração daquilo que não queria entender: LUTO!!! Aquele senhor
no caixão era eu.
Francinaldo Silva Dias
(Crônica publicada no Jornal O Povo online. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2014/12/08/noticiajornaldoleitorcronicas,3359795/despedida.shtml
).
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