sábado, 28 de março de 2015

DESPEDIDA

Nesta velha casa em metamorfose, já vivi muitos invernos. E os que comigo habitaram-na, ao longo desse tempo, juntos, enfrentaram muitas lutas. Entre essas paredes que hoje abrigam esse caixão com esse senhor, ali deitado, que parece dormir, passei muitos momentos bons e muitos momentos difíceis. Cheguei aqui pela primeira vez num misto de alegria e dúvida. Era mais um monturo que um terreno, mas, foi o que consegui comprar.
Em várias noites pretéritas meus amigos aqui vieram. E comemoramos. Uns traziam vinho, outros conhaque. Um amigo pedreiro me ajudou e juntos, eles, o conhaque, o vinho e eu conseguimos encher as bases. Havia mais boa vontade que pedra, concreto, cimento e ferro. Também havia mulheres que ajudavam a servir as coisas, o vinho, o conhaque, os tijolos e a massa. Elas ainda dançavam alegremente. Uma amiga trouxe um lenço, outra pediu a um amigo dinheiro. Disse que era pra fazer um café. Outra trouxe flores que colheu, se bem me lembro, nos jardins alheios. Pequeninas flores, amarelas, vermelhas, brancas. Não são daquelas luxuosas das floriculturas, mas dessas que aparecem por tudo que é lugar.
Tudo isso alegra o coração de um homem. Não obstante isto aconteça num funeral. A certeza do tempo que passou ainda não é certa. E como é certa. Aquele aparelho de som ali calado, já dançamos muitos escutando velhas canções, assim espantávamos os fantasmas da pobreza. Hoje o fantasma quer ficar. Não me conformo, não obstante a vida difícil que tínhamos. Uma amiga pegou um lenço e enxugou as lágrimas. Essa atitude me causa estranhamento, agora que não há a possibilidade de julgamento dos vivos, ouso de dizer, que é um choro suspeito.
Está chegando o fim da festa, todos estão indo embora, eu fico sozinho. Noutros tempos tinha companhia de sobra. Nenhuma tão séria. A inconstância é inimiga do amor. Mas amei também. E dessa árvore não houve frutos. Nem flores. Não consigo sair até a porta e sinto o obscuro dever de ficar aqui. Se pelo menos o senhor do caixão ainda estivesse aqui. Mas não. Os outros que saíram levaram-no. Em meio a choro e soluços levaram-no.
Eu já disse enfrentamos muitos invernos aqui? E secas também! Houve época que éramos farrapos de gente. Quando o tempo melhor sorriu quis uma companheira, mas já não inspirava a confiança de ninguém. Bebíamos desde a dor da miséria à satisfação da bonança, bebíamos tudo e tudo acabava, nada é pra sempre. Esses móveis que aqui estão: sofá velho, televisão, mesa, cadeiras, fogão, panelas, cama e tantos outros necessários ao funcionamento de um lar habitado; sinto que não precisarei usar nenhum. Quero dormir e não tenho sono. Tenho sono e tenho medo de dormir. Aliás, meu medo é acordar numa manhã cinzenta e triste de outono. O vento gélido vem esbofeteando a porta. Há três horas que todos saíram seguindo caixão. Ninguém voltou! Por que será? Se pelo menos aquele senhor que estava no caixão estivesse aqui.
Hesito sobre a possibilidade de usar algum aparelho. O computador está ligado. Quem o ligou? Lembro que enquanto muitos choravam uma jovem estava sentado em frente a esse aparelho. Chego mais perto. Ainda tenho medo dessa máquina. Ela sempre me assustou com essa capacidade da onipresença dissimulada. Chego mais perto, e veja na tela a página de uma rede social. A página é da jovem. Detenho-me um instante sem querer ler o que diz aquela mensagem em sua linha do tempo. É inevitável. Chego mais próximo, vejo algumas fotos, sou eu, meus amigos, sou eu sorrindo. Quando leio a mensagem em letras chamativas, a declaração daquilo que não queria entender: LUTO!!! Aquele senhor no caixão era eu.
Francinaldo Silva Dias

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