Não, esta
não é uma crônica sobre o Charlie
Hebdo.
A charge em questão é a do Chico Caruso, publicada no dia 08 de
março em O
Globo.
Tomei conhecimento dela na segunda, no trabalho, antes do expediente.
“Como podem
publicar uma coisa dessas com a presidente e logo no dia da mulher?”
indignava-se um. “Não pode, é uma falta de respeito”, dizia
outro.
– O que foi que
aconteceu? – perguntei.
– Domingo agora no
jornal O
Globo
saiu uma charge daquele Chico Caruso. A charge era a presidente Dilma
sendo decapitada.
Alguém poderá
dizer que a charge não era bem assim. Eu sei disso, mas foi assim
que ela foi a mim relatada e era essa a imagem que se formava em meu
pensamento. Automaticamente minha imaginação tentava reconstituir a
charge: cabeça cortada, o machado, o sangue... Isso me deixava muito
mal.
Antes que alguém
possa questionar (e condenar) as ações da minha imaginação e até
(quem sabe?) achar contraditório eu ser uma pessoa contrária a
violência, mas imaginar uma crueldade tão dantesca, faço a defesa
dessa minha faculdade mental recorrendo à santa Teresa D’Avila,
que, no seu livro Castelo
Interior ou Moradas,
chama a imaginação de louca, pelo fato dela, muitas vezes, ser
incontrolável. Como dito acima, a minha estava no automático.
O pessoal continuou
falando. Ouvi sobre passar dos limites, ofensas e perseguição; ouvi
nomes de políticos e de partidos; ouvi sobre mídias, oligarquias e
interesses; ouvi sobre tanta coisa e das coisas que ouvi, esta soou
como um tiro: “essa charge incita a violência”. Eu não
conseguia falar nada. Estava mal. Em meio a tanto sangue, a única
pergunta que formulara no pensamento era: “como o Chico Caruso foi
fazer uma charge dessas?”
Hora do intervalo. O
assunto sobre a charge continuava sendo a pauta. Descreveram-na
melhor e o equívoco foi desfeito: não era a cabeça da presidente
cortada. O desenho fazia referência às execuções do grupo
terrorista do Estado Islâmico. Dilma estava ajoelhada com aquela
roupa amarela e o carrasco atrás, todo de preto, encapuzado, só os
olhos de fora, com um punhal pronto para degolar. Isso desfez a
imagem sinistra e sanguinolenta que minha imaginação estava
reconstituindo a partir do “retrato-falado” da charge que me
fizeram no começo da manhã.
Também parei de
inquirir o desenhista da perspectiva de até então – com alarde e
desapontamento. Lembrei desta frase que é atribuída a Albert
Einstein: “tempo difícil esse em que estamos, onde é mais fácil
quebrar um átomo do que um preconceito.” Acredito que ele tenha
mesmo dito isso. Há dois escritos seus que me fazem pensar assim: as
correspondências que trocou com Freud sobre guerra e paz, após a 1°
guerra; e o livro (que é uma pena não ser mais editado!) “Como
vejo o mundo”.
O assunto ainda
estava rendendo. Continuei em silêncio. Parei de ouvir o que
falavam. Estava me sentindo cansado e o cansaço transforma qualquer
tom mais elevado em barulho.
Não tive expediente
à tarde. Feito os afazeres, um descanso de 20 minutos acabou virando
um cochilo de quase duas horas. Ao acordar, antes de colocar os pés
no chão, lembrei da charge e minha mente, agora descansada,
questionava a situação de outra forma. “E se o chargista quis
criticar os que criticam e atacam a presidente, comparando-os a um
grupo de fundamentalistas terroristas?”
Noite. Encontro com
amigos. Descubro que a charge também foi tema no trabalho deles.
Todos a atacavam. Doeu ouvir de quem semana passada propunha falar de
amor para combater o ódio a sádica brincadeira de que, “se
pudesse, mataria o chargista”. Lembrei da frase que me soou como um
tiro.
Disse então o que
suspeitava sobre a charge. Silêncio geral. Eu era o único a ver a
questão daquela forma.
Novamente se fez
silêncio quando alguém perguntou quem viu a charge.
Wi-fi ligado. Busca
acionada. Eis a imagem.
Percebo que há algo
escrito no desenho e estranho porque tantos falaram da imagem, mas
ninguém havia comentado sobre o texto verbal. Será que esqueceram
ou sequer leram? Quem saberá? As palavras da charge corroboraram com
minha ideia sobre ela.
“Essa charge
incita a violência”.
De fato, vi a charge
sendo criticada por quem não a viu; por quem a viu, mas não leu;
por quem a viu, leu, mas (imagino!) não a entendeu.
Tento imaginar como
Einstein veria o mundo hoje, em tempos muito mais difíceis, em que é
mais fácil abrir a boca para atacar e julgar do que abrir a mente e
os ouvidos para pensar melhor e ouvir; em que é mais fácil
reproduzir um discurso (seja ele qual for!) do que ver a alienação
que esse discurso traz; em que é mais fácil abrir uma página de
rede social do que abrir um livro.
Se você ainda não
percebeu, saiba que essa crônica é partidária. Se você já
suspeitava, largue a pedra e expanda a mente. Meu partido? Se o do
Cazuza era “um coração partido”, o meu é um livro aberto –
esse livro muitas vezes não lido e tantas vezes esquecido e que a
humanidade teima em não aprender suas lições – chamado
“Compreensão”.
João
Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com
(Crônica publicada na Revista da Cultura online link: http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-16/%E2%80%9CESSA_CHARGE_INCITA_A_VIOL%C3%8ANCIA_%E2%80%9D.aspx )
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