quinta-feira, 12 de março de 2015

ONDE OLHO A COISA MAIS LINDA?



Fui inventar de falar sobre “Garota de Ipanema”.

– Pessoal, eu vou falar hoje de uma das músicas nacionais mais tocadas e cantadas no mundo.

– O senhor vai falar agora sobre o “Aí, se eu te pego”?

E assim foi o duro começo.



...



– Essa música também foi gravada por Frank Sinatra, considerado um dos maiores cantores americanos, e conhecido com The Voice.

– Esse homem ganhou o The Voice Estados Unidos de que ano, professor?



...



– Professor, essa música é de velho.

– Por que diz isso? Só por que ela é antiga?

– Não, professor, por causa das palavras que ela usa.

– Como assim?

– Olha o nome: “Garota de Ipanema”. Se a música fosse da atualidade, ela seria “Novinha de Ipanema”.



...



– Professor, eu já ouvi falar dessa mulher aí que inspirou a música – disse uma aluna, que continuou contando sobre a vida da musa inspiradora de “Garota de Ipanema”: nome completo, nome da filha e o trabalho dela, nome da neta, do ex-genro...

Não eram informações tão pertinentes, vá lá, mas era uma informação, a única que a turma parecia saber sobre alguma coisa que, mesmo remotamente, se relacionasse a música “Garota de Ipanema”. Um pequeno passo, mas mesmo assim um passo. Experimentei, se me permitirem a comparação, a alegria de quem encontra a ovelha desgarrada, a moeda que se perdeu. Esbocei um tímido sorriso em um suspiro de alivio. “Achei ouro”, pensei.

– Muito bem. Como você ficou sabendo disso?

– Nesta revista de fofoca. – responde a aluna, que complementou dizendo que mãe e filha já haviam posado nuas em uma revista masculina.

Será preciso dizer que essa foi a informação que os alunos receberam com mais empolgação? “Ouro de tolo”, pensei. O sorriso, claro, desapareceu. O suspiro agora foi de decepção. Ouvi um aluno engraçadinho ainda falar:

– Oba! Vou passar a noite inteira estudando essa “Garota de Ipanema”.

Outro suspiro, só que mais demorado. Deixo para vocês adivinharem de quê era esse suspiro.



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– Você fez errado. Por que ensinar “Garota de Ipanema” para os alunos? Que serventia terá essa música na vida deles? Qual a utilidade? Eles vão precisar conhecer essa música para quê? – foi o que me disse um colega quando lhe contei da aula. Tomei um prolongado gole de cerveja para ajudar a engolir esse amargo comentário, que me espantou mais do que as coisas que os alunos disseram. Meu colega não abriu mão de seu ponto de vista, mesmo depois que eu expus os pontos positivos que a aula teve. Silenciei e recorri novamente ao amargo da cerveja, que estava mais fraco do que o amargo que se formava dentro de mim.

“Como assim, por que ensinar “Garota de Ipanema” já que ela não terá utilidade?” Era o que eu ruminava voltando para casa e lembrei de quando voltei para essa cidade desconhecida e descobria seus lugares e praças com os olhos carregados de encantamento. A música do Poetinha e do Maestro fala também disso. Da beleza, da graça, da poesia que transcende (e pode transcender) das coisas, das pessoas, do mundo.

É preciso tentar encontrar a beleza e a poesia nas coisas. Eu acredito que os alunos precisem, sim, dessa informação. Pode não ser a mais importante, pode até nem ser útil, mas ela é necessária – pelo menos para sobreviver nos momentos inevitáveis de tristeza e solidão.

– E onde estaria essa beleza e poesia na aula que você deu sobre a “Garota de Ipanema”? – alguém pode perguntar. Ela estava no grupo de alunos que pediram o cd emprestado; na aluna que pediu para tocar novamente a música; em três ou quatro que foram à biblioteca alugar um livro de poemas do Vinícius; na coisa mínima, “insignificante”, quase nada comparada com a grande maioria, mas que existe, que é diferente, que faz diferente e por isso faz a diferença, pequena, mas faz a diferença, um quase nada, mas que nos mostra que não foi em vão a aula preparada, que valeu a pena a garganta um pouco doida, que a semente do conhecimento não foi desperdiçada.

Toda geração tem seus ídolos, referências, heróis. Uma das grandes candidata a esse posto, em uma entrevista à Revista Época, disse que a mulher sempre foi vista e explorada como objeto e citou de exemplo a “Garota de Ipanema”. Pelo que disse, tal cantora mostrou desconhecer o que é a poesia, e talvez por isso sua música tenha sido objeto de análise em uma prova que não era nem de literatura nem de arte.

“Cecília Meireles. Vou levar o texto dela na próxima aula”, penso.

Se essa funkeira tornar-se ídolo dessa geração, que não seja por falta de boas opções. Farei a minha parte, vou apresentar-lhes Cecília Meireles, levarei um texto dela na próxima aula.

Então um verso da música “Garota de Ipanema” submerge das lembranças e acompanha-me no meu caminho de volta; continua comigo em casa; divide a existência com outros pensamentos e atenções, sempre ecoando, forte, mesmo durante uma leitura e um estudo; e permanece comigo até quando deito e só me abandona mesmo quando adormeço. O verso? “Ah, porque estou tão sozinho”. Deixo para vocês adivinharem a razão.



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João Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com

(Crônica publicada na Revista da Cultura, link: << http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-12/ONDE_OLHO_A_COISA_MAIS_LINDA.aspx >> e no Jornal O Povo on line. Link: http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/03/16/noticiajornaldoleitorcronicas,3408030/ondo-olho-a-coisa-mais-linda.shtml).

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