Fui inventar de falar
sobre “Garota de Ipanema”.
– Pessoal, eu vou falar
hoje de uma das músicas nacionais mais tocadas e cantadas no mundo.
– O senhor vai falar
agora sobre o “Aí, se eu te pego”?
E assim foi o duro
começo.
...
– Essa música também foi
gravada por Frank Sinatra, considerado um dos maiores cantores americanos, e
conhecido com The Voice.
– Esse homem ganhou o The
Voice Estados Unidos de que ano, professor?
...
– Professor, essa música
é de velho.
– Por que diz isso? Só
por que ela é antiga?
– Não, professor, por
causa das palavras que ela usa.
– Como assim?
– Olha o nome: “Garota de
Ipanema”. Se a música fosse da atualidade, ela seria “Novinha de Ipanema”.
...
– Professor, eu já ouvi
falar dessa mulher aí que inspirou a música – disse uma aluna, que continuou
contando sobre a vida da musa inspiradora de “Garota de Ipanema”: nome
completo, nome da filha e o trabalho dela, nome da neta, do ex-genro...
Não eram informações tão
pertinentes, vá lá, mas era uma informação, a única que a turma parecia saber
sobre alguma coisa que, mesmo remotamente, se relacionasse a música “Garota de
Ipanema”. Um pequeno passo, mas mesmo assim um passo. Experimentei, se me
permitirem a comparação, a alegria de quem encontra a ovelha desgarrada, a
moeda que se perdeu. Esbocei um tímido sorriso em um suspiro de alivio. “Achei
ouro”, pensei.
– Muito bem. Como você
ficou sabendo disso?
– Nesta revista de
fofoca. – responde a aluna, que complementou dizendo que mãe e filha já haviam
posado nuas em uma revista masculina.
Será preciso dizer que
essa foi a informação que os alunos receberam com mais empolgação? “Ouro de
tolo”, pensei. O sorriso, claro, desapareceu. O suspiro agora foi de decepção.
Ouvi um aluno engraçadinho ainda falar:
– Oba! Vou passar a noite
inteira estudando essa “Garota de Ipanema”.
Outro suspiro, só que
mais demorado. Deixo para vocês adivinharem de quê era esse suspiro.
---
– Você fez errado. Por
que ensinar “Garota de Ipanema” para os alunos? Que serventia terá essa música
na vida deles? Qual a utilidade? Eles vão precisar conhecer essa música para
quê? – foi o que me disse um colega quando lhe contei da aula. Tomei um
prolongado gole de cerveja para ajudar a engolir esse amargo comentário, que me
espantou mais do que as coisas que os alunos disseram. Meu colega não abriu mão
de seu ponto de vista, mesmo depois que eu expus os pontos positivos que a aula
teve. Silenciei e recorri novamente ao amargo da cerveja, que estava mais fraco
do que o amargo que se formava dentro de mim.
“Como assim, por que
ensinar “Garota de Ipanema” já que ela não terá utilidade?” Era o que eu
ruminava voltando para casa e lembrei de quando voltei para essa cidade
desconhecida e descobria seus lugares e praças com os olhos carregados de
encantamento. A música do Poetinha e do Maestro fala também disso. Da beleza,
da graça, da poesia que transcende (e pode transcender) das coisas, das
pessoas, do mundo.
É preciso tentar
encontrar a beleza e a poesia nas coisas. Eu acredito que os alunos precisem,
sim, dessa informação. Pode não ser a mais importante, pode até nem ser útil,
mas ela é necessária – pelo menos para sobreviver nos momentos inevitáveis de
tristeza e solidão.
– E onde estaria essa
beleza e poesia na aula que você deu sobre a “Garota de Ipanema”? – alguém pode
perguntar. Ela estava no grupo de alunos que pediram o cd emprestado; na aluna
que pediu para tocar novamente a música; em três ou quatro que foram à
biblioteca alugar um livro de poemas do Vinícius; na coisa mínima,
“insignificante”, quase nada comparada com a grande maioria, mas que existe,
que é diferente, que faz diferente e por isso faz a diferença, pequena, mas faz
a diferença, um quase nada, mas que nos mostra que não foi em vão a aula
preparada, que valeu a pena a garganta um pouco doida, que a semente do
conhecimento não foi desperdiçada.
Toda geração tem seus
ídolos, referências, heróis. Uma das grandes candidata a esse posto, em uma
entrevista à Revista Época, disse que a mulher sempre foi vista e explorada
como objeto e citou de exemplo a “Garota de Ipanema”. Pelo que disse, tal
cantora mostrou desconhecer o que é a poesia, e talvez por isso sua música
tenha sido objeto de análise em uma prova que não era nem de literatura nem de
arte.
“Cecília Meireles. Vou
levar o texto dela na próxima aula”, penso.
Se essa funkeira
tornar-se ídolo dessa geração, que não seja por falta de boas opções. Farei a
minha parte, vou apresentar-lhes Cecília Meireles, levarei um texto dela na
próxima aula.
Então um verso da música
“Garota de Ipanema” submerge das lembranças e acompanha-me no meu caminho de
volta; continua comigo em casa; divide a existência com outros pensamentos e
atenções, sempre ecoando, forte, mesmo durante uma leitura e um estudo; e
permanece comigo até quando deito e só me abandona mesmo quando adormeço. O
verso? “Ah, porque estou tão sozinho”. Deixo para vocês adivinharem a razão.
---
João
Paulo DiCarvalho
jpcmdm@hotmail.com
(Crônica publicada na Revista da Cultura, link:
<< http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-12/ONDE_OLHO_A_COISA_MAIS_LINDA.aspx
>> e no Jornal O Povo on line. Link:
http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2015/03/16/noticiajornaldoleitorcronicas,3408030/ondo-olho-a-coisa-mais-linda.shtml).
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