“No Piauí de cada
100 crianças que nascem / 78 morrem antes de completar 8 anos de
idade”. Esses dois versos, que formam a primeira estrofe de um
poema de Ferreira Gullar, repetem-se em mais 14 versos e 3 estrofes.
Acredito que o poeta
tenha tirado esse dado estatístico de alguma notícia. Não sei a
data do poema, tampouco a da notícia e quero acreditar que o número
de crianças mortas caiu, mas perceba a questão do tempo: ainda que
o número caia a zero e que a mortalidade infantil tenha sido
controlada; mesmo que um dia não haja um estado chamado Piauí (ele
venha a mudar de nome, por exemplo); ainda assim o poema de Ferreira
Gullar, que contém aquele dado funesto, será lido e estudado nas
escolas e universidades. Eis aí uma diferença entre o texto
jornalístico e o texto literário: a atemporalidade desse último.
No filme “Cazuza
– O Tempo Não Para”,
o protagonista, depois que ouve a leitura de uma pequena – porém
morna e desdenhosa – nota sobre a sua banda em um jornal e é
informado que a data do periódico “é de ontem”, arremata:
“jornal de ontem, notícias de anteontem.” Essa frase traduz a
ligação do texto jornalístico ao tempo. A informação deve ser
nova, atualizada, com os dados precisos da última hora, aliás,
minutos/ segundos, pois a informação antiga já não serve mais.
Se a notícia já
vem com prazo de validade, nossa memória ajuda a sepultá-la. Aquela
notícia que tanto me indignou no jornal vai arrefecendo com o
capítulo da novela, se apagando na exibição do filme, sendo
esquecida durante o futebol. O crime que tanto chocou e foi
insistentemente noticiado vai perdendo as referências: vamos se
esquecendo do ano, do local, do nome da vítima...
Fico incomodado com
o fato da noticia ir se desbotando da nossa lembrança e cair no
esquecimento. Só que tem algo que me angustia mais. É pensar no que
não foi noticiado.
Não lembro se foi
em 2010 ou 2011, não lembro a idade da jovem (era entre 17 e 19
anos), não me disseram seu nome. Só sei que estava grávida e, já
sentindo as dores do parto, foi ao hospital que a mandou para casa.
Não sei quantas vezes ela, sentindo as dores do parto, foi até o
hospital e quantas vezes o hospital, dizendo que não estava na hora,
mandou-a para casa (foram três ou cinco vezes?). Sei o desfecho:
morreu a jovem mãe e o bebê. Não sei se era menino ou menina, não
sei porque o hospital ficou protelando o momento de seu nascimento e
qual justificativa usou para dizer que não era o seu momento de
nascer, decretando com isso o seu momento de morrer. Não li isso no
jornal. Soube desse fato por conta de amigos que conheciam o pai da
garota.
Contei esse caso
agora em fevereiro de 2015 em sala de aula. Uma aluna disse que o
nome da jovem era Alana (ou Aline, ela não tinha certeza), tinha 17
anos e que a família precisou procurar a imprensa para que fizesse
uma reportagem na época; outra disse que neste ano aconteceu um caso
igual no mesmo hospital. Não li isso nos jornais.
Quantas mães e
bebês morreram neste hospital de 2010 para cá? Quais seus nomes?
Não quero uma imprensa sensacionalista que explore a dor de
familiares, mas o que está sendo feito para que os bebês tenham
assegurado e protegido o seu direito de nascer e as mães de serem
mães?
Mas essas notícias
não saem nos jornais. Onde nos informaremos da notícia que não deu
no jornal?
Voltemos ao poema de
Ferreira Gullar. Antes que alguém venha questionar o que o poeta tem
contra o Piauí, faço a sua defesa revelando o nome do seu poema:
“Poema
Brasileiro”.
A denúncia e reflexão que o poeta, com maestria, quis fazer vão
além da delimitação geográfica contida no dado estatístico e eis
aqui outra diferença do texto jornalístico para o literário:
enquanto aquele deve ser claro, objetivo, direto e factual, o texto
poético é plurissignificativo, por isso terá profundidade.
Profundidade que
muitas vezes nos falta para descartarmos respostas instantaneamente
prontas – “a culpa é da grande mídia”; profundidade que
muitas vezes falta (e não buscamos) em nosso conhecimento – não
me assusto se alguém leu os versos de Ferreira Gullar e pensou se
tratar de mais um sulista que não gosta do Nordeste, sem saber que o
poeta é maranhense; profundidade que muitas vezes falta no nosso
jeito de ser e de relacionar-se com o outro.
Não sei o nome da
mãe, nem o nome do bebê. Fiquei sabendo que mais mães e mais bebês
morrem nesse hospital. Não soube disso pelo jornal e se resolvi
contá-la nesse texto literário é por saber que, quanto mais essa
história for desconhecida, mais ela continuará acontecendo. Omito o
nome do hospital, mas você pode chamá-lo de Hospital Brasileiro –
quem tiver profundidade para entender, compreenderá.
---
João
Paulo DiCarvalho
(crônica
publicada na Revista da Cultura link: <
http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-03-03/N%c3%83O_DEU_NO_JORNAL.aspx
>
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