quinta-feira, 5 de março de 2015

NÃO DEU NO JORNAL



“No Piauí de cada 100 crianças que nascem / 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”. Esses dois versos, que formam a primeira estrofe de um poema de Ferreira Gullar, repetem-se em mais 14 versos e 3 estrofes.

Acredito que o poeta tenha tirado esse dado estatístico de alguma notícia. Não sei a data do poema, tampouco a da notícia e quero acreditar que o número de crianças mortas caiu, mas perceba a questão do tempo: ainda que o número caia a zero e que a mortalidade infantil tenha sido controlada; mesmo que um dia não haja um estado chamado Piauí (ele venha a mudar de nome, por exemplo); ainda assim o poema de Ferreira Gullar, que contém aquele dado funesto, será lido e estudado nas escolas e universidades. Eis aí uma diferença entre o texto jornalístico e o texto literário: a atemporalidade desse último.

No filme “Cazuza – O Tempo Não Para”, o protagonista, depois que ouve a leitura de uma pequena – porém morna e desdenhosa – nota sobre a sua banda em um jornal e é informado que a data do periódico “é de ontem”, arremata: “jornal de ontem, notícias de anteontem.” Essa frase traduz a ligação do texto jornalístico ao tempo. A informação deve ser nova, atualizada, com os dados precisos da última hora, aliás, minutos/ segundos, pois a informação antiga já não serve mais.

Se a notícia já vem com prazo de validade, nossa memória ajuda a sepultá-la. Aquela notícia que tanto me indignou no jornal vai arrefecendo com o capítulo da novela, se apagando na exibição do filme, sendo esquecida durante o futebol. O crime que tanto chocou e foi insistentemente noticiado vai perdendo as referências: vamos se esquecendo do ano, do local, do nome da vítima...

Fico incomodado com o fato da noticia ir se desbotando da nossa lembrança e cair no esquecimento. Só que tem algo que me angustia mais. É pensar no que não foi noticiado.

Não lembro se foi em 2010 ou 2011, não lembro a idade da jovem (era entre 17 e 19 anos), não me disseram seu nome. Só sei que estava grávida e, já sentindo as dores do parto, foi ao hospital que a mandou para casa. Não sei quantas vezes ela, sentindo as dores do parto, foi até o hospital e quantas vezes o hospital, dizendo que não estava na hora, mandou-a para casa (foram três ou cinco vezes?). Sei o desfecho: morreu a jovem mãe e o bebê. Não sei se era menino ou menina, não sei porque o hospital ficou protelando o momento de seu nascimento e qual justificativa usou para dizer que não era o seu momento de nascer, decretando com isso o seu momento de morrer. Não li isso no jornal. Soube desse fato por conta de amigos que conheciam o pai da garota.

Contei esse caso agora em fevereiro de 2015 em sala de aula. Uma aluna disse que o nome da jovem era Alana (ou Aline, ela não tinha certeza), tinha 17 anos e que a família precisou procurar a imprensa para que fizesse uma reportagem na época; outra disse que neste ano aconteceu um caso igual no mesmo hospital. Não li isso nos jornais.

Quantas mães e bebês morreram neste hospital de 2010 para cá? Quais seus nomes? Não quero uma imprensa sensacionalista que explore a dor de familiares, mas o que está sendo feito para que os bebês tenham assegurado e protegido o seu direito de nascer e as mães de serem mães?

Mas essas notícias não saem nos jornais. Onde nos informaremos da notícia que não deu no jornal?

Voltemos ao poema de Ferreira Gullar. Antes que alguém venha questionar o que o poeta tem contra o Piauí, faço a sua defesa revelando o nome do seu poema: “Poema Brasileiro”. A denúncia e reflexão que o poeta, com maestria, quis fazer vão além da delimitação geográfica contida no dado estatístico e eis aqui outra diferença do texto jornalístico para o literário: enquanto aquele deve ser claro, objetivo, direto e factual, o texto poético é plurissignificativo, por isso terá profundidade.

Profundidade que muitas vezes nos falta para descartarmos respostas instantaneamente prontas – “a culpa é da grande mídia”; profundidade que muitas vezes falta (e não buscamos) em nosso conhecimento – não me assusto se alguém leu os versos de Ferreira Gullar e pensou se tratar de mais um sulista que não gosta do Nordeste, sem saber que o poeta é maranhense; profundidade que muitas vezes falta no nosso jeito de ser e de relacionar-se com o outro.

Não sei o nome da mãe, nem o nome do bebê. Fiquei sabendo que mais mães e mais bebês morrem nesse hospital. Não soube disso pelo jornal e se resolvi contá-la nesse texto literário é por saber que, quanto mais essa história for desconhecida, mais ela continuará acontecendo. Omito o nome do hospital, mas você pode chamá-lo de Hospital Brasileiro – quem tiver profundidade para entender, compreenderá.



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João Paulo DiCarvalho


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